Autoria –Shostakovitch (Dimitri – 1906-1975 – Moscou, Rússia).
Libreto – idem e Aleksander Preis
Personagens:
Katerina Ismailova – Protagonista – interpretada por uma Soprano.
Boris Timofeyevitch – Interpretado por um Barítono.
Zinovy Borisovitch – Interpretado por um Tenor.
Serguei – interpretado por um Tenor.
Aksynia – interpretada por uma Soprano.
Sacerdote – interpretado por um Baixo.
Sargento de Polícia – interpretado por um Barítono.
Sonyetka – interpretada por uma Soprano.
Local e Época:
Rússia, meados do século XIX.
Prefácio
Habitualmente, pensa-se na arte russa produzida durante o período Stalinista, como um “artigo em série”, criado e executado de acordo com os parâmetros estipulados pelo chamado “Realismo Soviético”, cujas premissas básicas eram: o apego às formas e formatos clássicos, acadêmicos; a negação de qualquer valor às novas tentativas estéticas e o conformismo burocrático às normas ditadas pelo Regime político vigente.
E, com efeito, a maioria das manifestações artísticas do período seguiu essa cartilha; porém, segundo o Sociólogo e Mestre em Arte Russa pela USP/ECA, Thyago Marão Villela, alguns artistas ousaram burlar a confusa determinação oficial, que de tão dúbia ensejava diferentes interpretações, e deram vazão à sua criatividade e talento, criando obras que ultrapassaram em muito, o cânone oficial.
É o caso da presente Ópera, já que nela o “vigoroso camponês” das ufanistas pinturas oficiais cede o lugar para um frágil e vacilante “marido traído”; ou para um “poderoso, mal vil e interesseiro camponês”; onde a “camponesa virtuosa” troca de lugar com uma mulher volúvel e ardente, preocupada “egoisticamente com o seu prazer privado” e não com a construção do Socialismo; onde a “posse individual” de um bem de consumo – as meias que são desejadas por Sonia – destoa do caráter social e coletivo das posses etc.
Claro que tais transgressões custaram ao autor alguns problemas com a polícia política e com a censura oficial, que chegou a mutilar severamente a obra para que pudesse ser reapresentada.
Porém, esses percalços não diminuíram o brilho da composição, pois ao talento do compositor, somou-se a sua coragem em propugnar a liberdade artística que nunca deveria ser suprimida.
A soma, pois, da beleza em si da obra, mais o arrojo de Shostakovitch resultou no perene apreço que o público de todo o mundo lhe dedica.
Ainda que tivesse que enfrentar algumas críticas no Ocidente, em suas primeiras apresentações, atualmente são raros os que não se entusiasmam com essa adaptação magnífica do célebre Conto “Lady MacBeth de Mtsensk”, do grande Nikolai Lescov. Uma obra à altura da estupenda tradição erudita da “Santa Rússia”.
Enredo
O primeiro ato tem como cenário uma típica propriedade rural da Rússia imperial, pré-revolução bolchevique.
Vivem na fazenda a jovem Katerina; seu marido, o rico herdeiro Zinovy Borisovitch; seu sogro, o cruel proprietário Boris Timofeyevitch e os servos domésticos e os rurais.
Enquanto Katerina esbanja saúde, vigor e voluptuosidade, o seu marido é vitima de várias enfermidades crônicas que lhe acarretam severa fragilidade física e emocional. Criado por um pai tirânico, Zinovy tornou-se um homem abúlico, covarde e infantilizado, cujo único atrativo para Katerina é a fortuna que herdaria e que a tiraria definitivamente da miséria.
Porém, com o passar do tempo, os defeitos do marido passaram a exasperá-la de tal modo que até o interesse que ela tinha por sua condição social e financeira, diminuiu. Contudo, servia como um poderoso freio à sua ânsia por independência, aventuras, paixões e amores, o temor que ela sentia do sogro.
E, realmente, a brutalidade, o espírito vingativo e a crueldade de Boris Timofeyevitch eram conhecidas por todos que, não sem razão, tinham-lhe verdadeiro pavor.
Todavia, certo dia, Zinovy teve que viajar para vistoriar alguns moinhos que possuía noutras localidades e, então, aproveitando-se da ausência do patrão, um servo chamado Serguei não hesitou em iniciar uma corte sobre a sua patroa, já que era visível a sua carência.
Confiante em sua força e beleza e com a audácia típica dos jovens, o rude Serguei dispensou as sutilezas e não teve a menor dificuldade em se fazer desejado por Katerina. Afinal, ele era o oposto do marido que a enojava. Um verdadeiro homem, como há tanto ela desejava.
Assim, em pouco tempo a paixão entre ambos abandonou toda cerimônia e prudência e desdenhou de todos os limites, tornando-se um verdadeiro escândalo entre a comunidade da fazenda, cujas intrigas não tardaram em chegar ao conhecimento de Boris, o sogro temido.
E com essa delação, termina o primeiro ato.
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O segundo ato também se passa na vivenda de Katerina, Zinovy e Boris.
Alertado pelos espiões, o velho Senhor Feudal flagra, em certa manhã, um sorridente Serguei saindo do quarto da nora. Era a prova que lhe faltava. Juntamente com os capangas que deixara de sobreaviso, agarra o amante e a partir daí passa a torturá-lo barbaramente em diversas ocasiões.
Amargurada, Katerina tenta intervir, mas Boris ignora os seus apelos e não mede as consequências para satisfazer a sua sede de vingança e o seu sadismo, repetindo amiúde os espancamentos, as privações de água e de comida, as queimaduras e todas as outras formas de tortura que já se inventou.
E aquele tétrico festival avança de tal modo, que cria em Katerina um ódio imenso ao monstruoso torturador. Em seu peito já não existe apenas o antigo temor, mas, também, um aceso desejo de eliminar o malvado e salvar o seu querido Serguei.
E da intenção à prática, pouco tempo é preciso. Aproveitando-se de um descuido do malvado, ela o assassina através de envenenamento com raticida. A declaração de um médico de que a morte aconteceu por congestão a isenta de qualquer responsabilidade. E a sua fingida dor, livra-a de outras suspeitas.
Logo em seguida, liberta o seu bem amado e, graças aos seus cuidados, ele se recupera completamente, passando ambos a viver maritalmente e a desfrutar da riqueza do falecido. Porém, a perseguição tenaz de Boris não termina com a sua morte física, pois como se fosse um castigo do Além, sempre que os amantes fazem amor, ela é assombrada pelo fantasma do sogro.
E essa não é a única contrariedade que enfrenta, pois, antes do previsto, o seu marido, Zinovy, regressa e logo é informado da traição. Perturbado e ensandecido de dor, ele não se limita a atacar-lhe apenas verbalmente e parte para a agressão física em diversos momentos. Numa dessas ocasiões, Katerina grita por socorro, Serguei irrompe no aposento e após uma breve luta com Zinovy o casal o mata e enterra o corpo no porão da residência.
É o fim do segundo ato.
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Quando o terceiro ato tem início, algum tempo já passou. O cenário ainda é a propriedade rural.
Katerina viveu nos últimos dias a mais completa felicidade, pois tendo anunciado que o marido havia falecido numa distante localidade, herdou-lhe todos os bens e, com isso, realizou o seu projeto original de se tornar rica e poderosa; ao qual se acrescentou o sonho romântico que passou a viver com Serguei, que se desdobrava como amante.
Menos por ela e mais pelo interesse na fortuna que ela havia herdado, mas tal era a sua performance, que ela passou a acreditar que ele a amava realmente.
Assim, para assegurar a posse definitiva daquela felicidade, o casal resolve legalizar a sua relação, casando-se oficialmente.
De imediato preparam uma luxuosa cerimônia civil e religiosa e uma fartíssimo buffet, convidando toda a aldeia para a efemérides.
E o convite – como se fosse por mágica e não só pela subserviência que, em geral, é prestada aos poderosos – cala as mais diversas censuras que eram feitas aos amantes e solapa as dúvidas que restaram com as mortes do marido e do sogro.
Dessa sorte, as cerimônias acontecem como o planejado, seguindo-se o lauto jantar onde abundam os acepipes, os licores, os risos e os sentimentos de amor e de alegria.
Porém, a grande ingestão de álcool logo começa a minar a harmonia e a felicidade que reinavam, assim como acentua a libido dos presentes, que aos pares começam a buscar locais isolados para se relacionarem.
E pouco tempo passa até que um desses casais descobre no porão a cova em que Zinovy fora enterrado, desmascarando a farsa dos anfitriões, que, então, saem das bodas diretamente para a cadeia.
É o fim do terceiro ato.
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O quarto ato apresenta como cenário um campo de prisioneiros em trânsito para a Sibéria.
As cores escuras dos painéis, a constante e ameaçadora presença de carrancudos e cruéis guardas, a supressão de todos os direitos, talvez da esperança, e da perdida liberdade compõe o universo daqueles infelizes. É a perfeita representação de um mundo de maldades, de sordidez, de mesquinhez; o quê, para muitos críticos e eruditos, é, também, uma crítica aos terríveis “Gulags”, os odiosos “campos de concentração” que sempre houveram na Rússia e que durante o regime de Stalin tornaram-se um instrumento a mais para a perseguição, para o terrorismo estatal etc. contra os dissidentes do governo, fossem eles, reais ou apenas imaginários.
Um quadro perturbador, onde os homens se bestializam, abandonando todo sentimento de compaixão, de moralidade, de amor. Onde se esquecem dos valores que antes lhes eram naturais. Onde o único objetivo é sobreviver ao frio excruciante, à fome e a sede, às torturas dos carcereiros, às violências e artimanhas de colegas de infortúnio etc.
E é neste ambiente que estão Katerina e Serguei, haja vista que após um rápido julgamento, em que pouco puderam se defender, foram ambos condenados ao exílio.
Nalgumas encenações mais elaboradas dessa Ópera, a procissão dos condenados é encenada ao som de melodias que acentuam ainda mais o calvário da marcha. Noutras, mais modestas, a ação é encenada no próprio campo e, nesses casos, a cena inicial mostra uma Katerina, profundamente perturbada, à procura de seu bem amado.
Não lhe pesa na consciência nenhum remorso pelos crimes praticados. Em sua alma existe apenas um insaciável desejo por Serguei. Uma verdadeira obsessão que a faz abandonar todo amor próprio e se sujeitar aos mais bizarros caprichos do amante. Nada é capaz de negar-lhe e vive apenas em sua função.
Porém, a recíproca não é igual, pois ela nada mais pode lhe oferecer. Se antes ela representava uma chance real de acessar um alto patamar financeiro e social, agora, para ele, ela não passa de uma mulher desinteressante; a cada dia mais velha e mais feia.
Seu coração e seu desejo focalizam outra mulher. Uma jovem e bela prisioneira, Sonyetka, cuja volubilidade é conhecida por todos; bem como, a sua pronta disposição em se deitar com quem lhe oferecer mais.
Cheia de artimanhas, ela sabe como seduzir os homens e por isso recusa sistematicamente às investidas de Serguei, embora também o deseje, pois sabe que cada recusa sua, aumenta o interesse dele.
E, de fato, as negativas da jovem açulam cada vez mais o interesse de Serguei, que não mede esforços para possuí-la.
Vendo, então, o estado a que o reduziu, ela diz que será sua, desde que ele lhe traga as meias que Katerina usa para mitigar o frio. Essa exigência visa comprovar o quão ele lhe pertence e como um insulto a Katerina, que as peças em si, já que estão em péssimo estado.
Entorpecido, ele busca a ex-amante e usando de um artifício mentiroso consegue que ela se descalce com pouca relutância, pois espera que o seu gesto de desprendimento, faça com que ele volte a ser seu.
Radiante ele parte em busca de Sonya, mas ela recebe as meias com evidente desdém, pois, sabe que pode aumentar a sua exigência, já que ele concordará com tudo. Serguei protesta, mas em vão.
Contudo, antes que as novas exigências sejam feitas, escuta-se o urro de Katerina, que como uma ursa possessa, encaminha-se para onde eles estão.
Pouco custou para que ela descobrisse o verdadeiro motivo de ele ter-lhe pedido as meias. Cega de ódio e de ciúme, ela parte em busca de vingança.
Quase sem sentir o tablado da balsa que transporta os prisioneiros, vai ligeira para o canto em que estão Serguei e Sonya e como uma fera selvagem lança-se sobre a rival e uma luta feroz acontece entre as duas, até que uma sacudida mais forte da embarcação as derruba no rio gelado, que, então, passa a ser a sepultura das duas. Um triste final para vidas tão desgraçadas.
E aos gritos desesperados das mulheres se junta uma sentida ária que o Coro entoa, enquanto descem as cortinas.
É o fim da Ópera.
Histórico
A obra foi encenada pela primeira vez em Leningrado, no ano de 1934, com o nome de “Lady Macbeth do Distrito de Mtsenk”.
A sua criação, segundo comentado no prefácio, foi um ato de contestação aos padrões do “Realismo Soviético”, imposto pela ditadura stalinista. E como seria de se esperar, não demorou a que sofresse censura e perseguições por parte da polícia e dos serviços de repressão do regime.
Contudo, apesar dessas ameaças, obteve um belo sucesso junto à crítica especializada e ao público.
Todavia, posteriormente, Shostakovitch capitulou ante as pressões e a reformulou em grande escala, tendo a nova apresentação acontecido na capital, Moscou.
E se na Rússia o público foi receptivo às duas versões, o mesmo não se deu no Ocidente, cuja crítica julgou-a carente de unidade estilística, embora reconhecesse muitas qualidades no trabalho do compositor.
Atualmente as suas encenações não são constantes, mas ainda assim ocupa um lugar de destaque no cenário da “Grande Arte” e conta com um grande número de admiradores, tanto por sua excelência artística, quanto pela ousada tentativa de resistir ao modelo oficial.
São Paulo, 07 de maio de 2015.
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro, outono de 2015.