Quando se atravessa o estreito vale do rio Nox, entre as colinas verdes de Villefort, é possível se deparar com uma grotesca cena e que é a responsável por esvaziar as estradas daquela região, fazendo com que os peregrinos mais sensatos tomem um desvio que contorna a pradaria e acrescenta às suas viagens por volta de uns quinze quilômetros, ou mais. Confesso, que eu mesmo evitei aqueles arredores por mais de uma vez, mas ultimamente andei me sentindo inclinado a conferir a veracidade da lenda que muitos contam, e que poucos tiveram a coragem de conferir.
Lá jaz, segundo muitos, um imenso ser em forma de tentáculos, que fora congelado nas águas há muito tempo, por um cavaleiro mágico que possuía o dom de manipular os elementos. Este monstro andava se arrastando pelo vale e comendo e destruindo tudo o que encontrava pela frente, até que este lendário cavaleiro apareceu... Isso já foi há três séculos.
A lenda, ou história, se refere a uma entidade gigante com patas de aranha e tentáculos de molusco, que fora criada das areias da margem do rio e tomou vida graças à magia.
Andei por algumas horas por uma terra evitada e esquecida pelo tempo, onde apenas o musgo reinava absoluto de pedra em pedra, de árvore em árvore, e depois de um certo tempo, pude divisar na distância, uma enorme estrutura de formato hediondo, que crescia cada vez mais à medida em que eu me aproximava. Eu estava sozinho, cercado por um bosque milenar e por um vale desnudo e sem fim, quase completamente silencioso, e lá adiante, contrastando com nuvens de tempestade que se reviravam no horizonte em meio a um céu carmim esverdeado, um ser colossal de doze braços que se mantinha inerte, já a trezentos anos!
Ele era deveras imenso, muitos dos tentáculos repousavam na terra como se raízes retorcidas de uma árvore gigantesca fosse, e os outros tentáculos estavam alçados aos céus, como torres colapsadas prestes a darem o seu último giro e ruir. O seu maior braço erguia-se acima dos vinte metros, e tinha entre dois e três de diâmetro, cada um dos doze! Diante dessa paisagem insólita, a sombra daquela criatura chegava até mim, mesmo ainda estando distante a quase um quilômetro dela.
Aquela imagem dominava toda a paisagem, conferindo um ar sinistro e perturbador ao ambiente, como se a qualquer momento pudesse ele romper a sua prisão e destruir de novo quem ou o quê encontrasse pela frente. Pois que três rios confluíam exatamente nesta criatura, sendo que um deles estava congelado, prendendo-a em seus braços frios, adormecendo a criatura para sempre. Uma grande cúpula, semelhante a um geodo de quartzo também o envolvia, como uma tempestade de cristais que deitou ali feito grades de uma prisão.
Dezenas de pássaros sobrevoavam ao redor do monstro, creio que muito tinham ninhos ali, achando ser aquilo uma simples montanha. E eu, diminuto cá embaixo, sob a sombra fria, me peguei imaginando e sonhando como teria sido aquela batalha. Como teria o cavaleiro, humano e frágil, vencido semelhante ser em forma de monstro...
Ele deixou ali, para sempre impresso naquela terra, a marca de seu grandioso feito. Por quem o teria feito? Por uma princesa? Por um amor verdadeiro? Por um reino inteiro e os seus tesouros? Por que alguém enfrenta semelhante criatura? Mas, mais ainda, como alguém vence semelhante demônio?
Hoje, para mim, aquela cena eternizada na paisagem não passa de um calafrio medonho, de um mal estar na boca do estômago que eu preferiria não sentir. Apenas uma visão da qual me sinto inclinado a desviar os olhos, mesmo quando a curiosidade inicial fez-me dirigir-se a ela. Mas para aquele cavaleiro que a enfrentou, fora o próprio apocalipse. A própria morte a esperá-lo com os seus doze braços abertos. Portadora de um rugido tão alto e ameaçador, e de um cheiro tão nauseante, que o próprio mal possivelmente desejou não ficar por ali. Mas por que ele não se esquivou?
Vendo ali hoje, a trágica cena imortalizada no vale solitário, retorna à minha mente a história que li num pergaminho antigo, e começo a acreditar na realidade de suas palavras:...
O pergaminho narra a história da batalha que ali se travou. A aguerrida luta de um homem contra uma besta, e que ficou por muito tempo impressa na paisagem.
"Diante da recusa do cavaleiro em encerrar a sua campanha pela justiça e verdade pelas terras do Imperador, eis que o mesmo encomendou ao feiticeiro a criação de um golem que teria um único propósito: Destruir o que o cavaleiro mais amava...
E de todas as coisas que ele amou, e que o monstro destruiu em seu caminho, como as florestas, os rios e as montanhas... havia um último e maior tesouro a ser alcançado. A sua filha.
E foi então, que finalmente se encontraram no último vale que separava o monstro do seu maior amor. Pois que o cavaleiro não poderia fugir para sempre tendo a filha nos braços... Por que para onde ele ia, o monstro ia atrás, e por onde o monstro passava, nada ficava de pé.
E justamente ali, na confluência de três rios caudalosos, num vale profundo, o cavaleiro o encurralou! E correndo em direção àqueles tentáculos medonhos e potentes, o cavaleiro o enfrentou! Primeiro, escalando, estudando e prevendo cada movimento... enquanto os rios, atendendo ao chamado daquele cavaleiro que manipulava as águas, enchiam-se furiosos com ondas que assolavam a criatura.
As ondas revoltas se confundiam com os braços do monstro. E arrebentavam nele como flocos brancos de nuvens, porque começavam a se congelar.
Mas o golem era poderoso, e o gelo não o detinha! E então uma chuva começou a surgir, também convocada por aquele que dominava a fluidez da natureza... E dessa chuva brotaram lágrimas brancas em cristais de gelo, e em breve o campo verde da paisagem e tudo ao redor dele estavam brancos como mármore. E dessa tentativa de esfriar o tempo e as águas, o embate se acalorou! O chão tremeu, e o vento soprou, porque a criatura era titânica e pavorosa, e um urro seu derrubava as árvores e assolavam as pedras. Mas mesmo assim, ela não seria ignorada, porque ameaça aquilo que de mais caro ele tinha.
E choveu, e nevou, e todo o inverno do mundo desabou ali naquele dia, em meio ao fogo quase inenarrável da batalha... Até o rio se tornar cristalino feito vidro... e o imenso ser descobrir-se preso nas garras do gelo...
Tudo tinha acabado?
Estava livre a criança para seguir pelos caminhos da existência, sem ser perturbada ou perseguida?
Ainda não! Pois que o gigante era poderoso, e rompeu o gelo espatifando-o, estilhaçando-o, como se não significasse nada!
Diante daquela visão, diante da tempestade que caía branca como uma alma, e do sol verde-claro que tentava espiar por entre as nuvens, tentáculos inquietos se retorciam em meio a gritos e fúrias! E então o cavaleiro percebera que não tinha escolhas....
Ele convocou todas as águas que o rodeavam, da terra, do céu, do ar... e em meio à tempestade de frio que despencava como ondas de águas em rios caudalosos, e golfadas de ventos gelados como cortinas transparentes em gotas de chuvas como setas de gelo... Ele envolveu o monstro num abraço gelado, que se enrijecia a cada passo seu em direção à criatura.
De repente, tudo parou... apenas o assovio gelado e distante dos ventos nas montanhas... e a criatura, num esforço descomunal de quebrar o gelo... E o cavaleiro, num esforço igualmente insuportável, de mantê-lo...
Quem, dos dois, fechasse os olhos primeiro, seria o perdedor. E então, o gelo debaixo dos pés do cavaleiro tornou-se um pouco mais turvo. A imagem por trás do gelo, aos pouco ficou mais indistinta... E finalmente, a criatura fechou as suas enormes pálpebras...
As nuvens começaram a ir embora. O sol fraco da tarde refletia-se na escultura polida de repente lançada ali, como o negativo de uma foto tirada de uma batalha há muito esquecida...
O tempo trouxe curiosos... Pessoas vieram observar aquela estranha cena... Um homem imóvel, de olhos abertos, diante de um monstro preso em gelo...Porém, logo perceberam uma estranha característica: O gelo não era frio, e nem se derretia ao sol! Ele jamais se derreteu! Havia se tornado tão duro quanto uma pedra...
O corpo do cavaleiro, embora não estivesse congelado, também estava imóvel... E assim ficou, até que a sua pele e a sua carne se desfizeram no tempo... E o seu sangue, também petrificado, desmanchou-se ao soprar do vento, nas décadas seguintes... Apagando para sempre a sua imagem dali...
O tempo passou, e as pessoas daquele vale passaram a chamar o gelo perene de cristal de quartzo. E ao sangue do cavaleiro, de joias de rubi.
E é por isso, que há tantos e tão abundantes cristais de quartzo pelo mundo, e tão poucos e valiosos rubis.
Porque aquilo que se tem pouco, muito vale.
Assim como a coragem, a verdade e a justiça.
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