Nos palácios da velha Moscou
a primavera entra insolentemente
e dispersa todos os mitos
nos quadros onde as peliças
desalojam os chapéus de verão.
Ao longo dos patamares de madeira
vasos de flores são alinhados
amarelos amores perfeitos e goivos,
nos quartos o ar é mais fresco,
mais poeirento nos celeiros.
O passeio fala, familiar,
à janela quase cega,
no rio vão se reencontrar
o sol poente e a tarde de verão.
E o mais humilde dos corredores
repete o que diz todo o espaço,
o corredor que bem nos conhece,
nós, pobres homens com nossas dores,
repete as propostas fortuitas
de abril, no canto das goteiras,
a alba sobre a paliçada,
parece querer se eternizar,
a chama e o pavor se misturam
lá fora como nas casas,
e o ar por toda parte é como louco,
e por toda parte botões inchados,
na planície como nas janelas,
na rua e nas oficinas.
Porque se queixa o espaço enevoado
e a terra tem gosto amargo?
Estou lá para reconciliar
os longínquos em sua solidão,
estou lá para desanuviar
a terra além dos subúrbios,
e se, quando volta a primavera,
para as refeições e as noitadas
que parecem despedidas,
meus amigos em minha casa se reúnem,
é porque toda existência espera
que a secreta corrente de dor,
aqueça o frio solitário.
Boris Pasternak - O Doutor Jivago, Belo Horizonte, Editora Itatiaia, 1962, tradução de Oscar Mendes e Milton Amado. Poemas traduzidos por Heitor Martins. A Terra, pp. 560/561