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O Mendigo da Lagoa

 
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O MENDIGO DA LAGOA


(Ficção. Com excepção de alguns topónimos, todos os componentes são fictícios.)


… Muitos sóis e luas irão nascer …
… Tenho muitos anos para sofrer …
… Vivo com o meu ódio a mendigar …

… Minha luz dos olhos que eu vi nascer …
… Num dia tão belo a clarear …
… Vivo com o meu ódio a mendigar …

Da balada
“Canção da Paciência”
de - Zéca Afonso -



1. O dia-a-dia do “Mendigo da Lagoa”.

Na segunda metade da década de 80, quem passasse pela “Lagoa do Quinaxixe”, em Luanda, entre as dezoito horas e a meia-noite veria, debaixo de um prédio inacabado que ficava mesmo junto à lagoa, um mendigo sentado, tendo como encosto um dos pilares do referido prédio. Todos os dias, entre as 18 e a meia-noite era ali visto, no mesmo local, fizesse sol ou chuva, estivesse calor ou frio. Esse facto valeu-lhe a alcunha de “Mendigo da Lagoa”. Vestia sempre um grande casacão e, na cabeça, usava sempre um grande chapéu de abas largas. Tinha umas longas barbas brancas que faziam lembrar o Pai Natal e um bigode, igualmente todo branco cujas pontas enroladas descaíam para cada uma das faces, até ao queixo. Ao seu lado tinha sempre um saco onde guardava as esmolas que lhe davam. A sua idade deveria situar-se entre os 60 e os 70 anos.

Todas as pessoas que por ali passavam, de carro ou a pé, de bicicleta ou de motorizada, quase sempre lhe deixavam uma esmola.

Logo que chegasse a meia-noite, (o “Mendigo da Lagoa” não tinha relógio mas sentia, por força do hábito, quando a meia-noite chegava) ele pegava no seu saco e subia para a sua casinha de adobo, no bairro Catambor (um bairro que se situa a cerca de 1 km da Lagoa do Quinaxixe).

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2. Assassinato na Lagoa do Quinaxixe.

E assim ia decorrendo a vida, monótona e igual, plácida e serena, do “Mendigo da Lagoa”. Do Catambor descia para a Lagoa do Quinaxixe às 17 horas (5 da tarde) e à meia-noite subia do Quinaxixe para o Catambor, para a sua casa. A monotonia e serenidade da vida do “Mendigo da Lagoa” não estavam, porém, destinadas a durar eternamente. Elas sofreriam um contratempo numa bela manhã daquele fresco mês de Junho. Com efeito, por volta das 6 horas daquela manhã, um cadáver foi visto a flutuar na Lagoa do Quinaxixe. Alguns populares que por ali passavam viram o corpo e um deles telefonou para os Bombeiros para procederem à sua remoção. Os Bombeiros, por sua vez, telefonaram à AngoCrime (Agência de Investigação e Notificação de Crimes) para que assistisse à remoção do corpo e observasse o cadáver pois poder-se-ia dar o caso de se tratar de um assassinato. Cerca de meia hora depois já estava no local uma equipa dos Bombeiros e, passados mais alguns minutos chegava uma equipa da AngoCrime composta pelo Inspector Juvenal e por dois investigadores da Agência, o Tobias e o Tibúrcio.

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Os Bombeiros deram, de imediato, início ao seu trabalho. O corpo foi rapidamente removido da água. E quando o cadáver foi baixado para o solo, um espanto geral se desenhou no rosto de todos os presentes. É que o morto era, nem mais nem menos, o Senhor Frederico de Assunção, um dos homens mais ricos em Angola senão mesmo o mais rico, um grande potentado dos negócios e das finanças, homem de avultadíssimos recursos financeiros com acções em todas as grandes companhias privadas do país e com o seu nome ligado a algumas obras de utilidade pública como bibliotecas, postos médicos, escolas particulares, clubes desportivos, etc. Frederico de Assunção era conhecido de quase todos os angolanos, e especialmente dos luandenses, ou pessoalmente ou através da televisão, pois era rara a semana em que não aparecia nos ecrãs da televisão para falar sobre negócios, economia, comércio em geral, e matérias afins. Enfim, Frederico de Assunção era uma verdadeira figura pública nacional e na capital em particular.

Foi, pois, com grande incredulidade que os presentes na Lagoa do Quinaxixe, naquela manhã, viram o cadáver de Frederico de Assunção ser baixado para o solo, depois de ter sido retirado da lagoa.
-- Oh! É o Senhor Frederico de Assunção! – Disseram quase todos ao mesmo tempo.
Mas, o espanto geral não ficaria por ali. Os presentes notaram que, preso ao pescoço do morto por uma fita, pendia um invólucro de plástico, dentro do qual se encontrava um pedaço de papel no qual estava escrito o seguinte:

AGRADEÇO A TUA ESMOLA, FREDERICO.
MAS HOJE VIESTE PARA MORRER.
FIZESTE-ME SOFRER MUITO, FREDERICO.
-- Só me faltava esta!!! – disse o Inspector Juvenal da AngoCrime olhando, boquiaberto, para o pequeno pedaço de papel. – Enganou-nos a todos fazendo-se passar por mendigo.
-- Será possível?!! O “Mendigo da Lagoa” !!? – Interrogou-se o Chefe da Equipa de Bombeiros!
-- Quase me custa a acreditar – disse o Tobias, um dos investigadores da AngoCrime -- que o “Mendigo da Lagoa” é, afinal, um assassino.
-- E onde andará ele? – Perguntou um estudante cujo maior desejo era ser um dia um investigador da AngoCrime.
-- Quem, o “Mendigo da Lagoa”? Esse assim já se pirou. A esta hora deve estar bem longe! – Respondeu um outro estudante provavelmente a pensar nalgum filme policial que vira na televisão.
-- Ó pá, isto faz-me lembrar uma balada do Zéca Afonso chamada “Canção da Paciência”. Vocês já ouviram? – Perguntou um Senhor com aspecto bonacheirão e, provavelmente, grande fã da música dos anos 60.
-- Ah, eu conheço essa balada – disse outro Senhor a sorrir – refere-se a um magnata japonês que vendeu todas as suas riquezas e foi para a porta de um templo pedir esmola durante vinte anos para apanhar alguém de quem se queria vingar, não é? Não é essa balada?
-- Sim é essa mesmo – disse o Senhor que primeiro se referira à balada – ele esperou vinte anos como mendigo, pá, e apanhou a pessoa que queria matar e matou-a pá, quando lhe foi dar uma esmola.
-- Se calhar foi o mesmo que se passou com o “Mendigo da Lagoa” – disse um outro Senhor, com ar pensativo.
-- Se calhar nem foi ele. Se calhar armaram-lhe uma ratoeira! – Disse uma jovem com ares de intelectual.
-- Ó pá, não adianta nós estarmos aqui a dizer que foi ou não foi o “Mendigo da Lagoa” que cometeu o assassinato. Quem vai decidir é o tribunal, pá. O resto são tretas – esta era a ideia de um funcionário reformado de um dos tribunais de Luanda.

Enfim, não se falava noutra coisa. Como geralmente acontece nestes casos, todos queriam dar a sua opinião. O Inspector Juvenal, entretanto, pediu aos seus dois investigadores, o Tobias e o Tibúrcio, que colocassem o cadáver por cima da viatura da AngoCrime para que fosse levado para o hospital a fim de ser submetido aos exames pós-morte. E, nesse mesmo dia, o resultado da autópsia foi divulgado:

“Morte por estrangulamento, por volta das 23h45m.”
Mas… e o que era feito do “Mendigo da Lagoa”? Andaria fugido? Estaria em casa? Logo de manhã, os vizinhos no bairro Catambor onde ele vivia, foram à sua cabana ver se ele lá estava. Não estava.
-- Pirou-se – foi o consenso geral -- fugiu para algum local desconhecido. Não é costume ele sair de casa tão cedo. Foi-se esconder nalgum lugar.

E, entretanto, a AngoCrime fez sair o seguinte comunicado:

AngoCrime
(Agência de Investigação e Notificação de Crimes)
COMUNICADO

“A AngoCrime informa a todo o público em geral que foi assassinado, a noite passada, em Luanda, o Senhor Frederico de Assunção, figura de relevo e filantropo de grande vulto na nossa sociedade e bem conhecido de todos. Presume-se que quem o assassinou, segundo as provas que temos até ao momento, tenha sido o “Mendigo da Lagoa”, que todos conhecem. Segundo informações que nos chegaram, o “Mendigo da Lagoa” não se encontra em casa, pelo que se presume ter fugido. A AngoCrime solicita a qualquer cidadão que saiba do seu paradeiro que informe imediatamente, e alerta que, quem o der guarida e o esconda, incorrerá em crime punível nos termos da lei.”

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3. O “Mendigo da Lagoa” desloca-se ao bairro Cassenda.

Entretanto, por coincidência, naquela manhã, ou seja, na manhã em que foi encontrado o cadáver de Frederico de Assunção na Lagoa do Quinaxixe, o “Mendigo da Lagoa” havia saído de casa bastante cedo. Para onde? Para o Bairro Cassenda (um bairro que fica a cerca de 1 quilómetro do Bairro onde ele residia, o Bairro Catambor). O motivo da ida ao Cassenda foi o de pedir alguns medicamentos a um velho amigo seu ervanário, de nome Samuel Dongala, para uma dor de barriga que o não deixara dormir. Assim, no momento em que os Bombeiros removiam o corpo de Frederico de Assunção da Lagoa do Quinaxixe, já o “Mendigo da Lagoa” se encontrava em casa de Samuel Dongala, o seu amigo ervanário. E foi aí que, perplexo, o “Mendigo da Lagoa” escutou, na televisão o comunicado da AngoCrime que dizia que ele era suspeito de ter morto Frederico de Assunção. Samuel Dongala, ao ouvir os protestos do seu velho amigo, que afirmava a pés juntos que não havia sido ele que assassinara Frederico de Assunção, e que ele nem sequer havia ido à lagoa no dia do assassinato devido às suas dores de barriga, colocou uma das mãos sobre o seu ombro, e disse:

-- Olha, “Mendigo da Lagoa”, então aconselho-te a fazer o seguinte: vai apresentar-te à AngoCrime, pá. É a melhor coisa que tens a fazer. Se tens a tua consciência limpa, vai pá. Vai apresentar-te.
E, seguindo os conselhos do amigo, o “Mendigo da Lagoa” foi apresentar-se à AngoCrime.

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4. O detective AlfaZero reage ao assassinato de Frederico de Assunção.

No seu apartamento-escritório, na Avenida Marginal, o detective AlfaZero escutou, na televisão, o comunicado da AngoCrime.
-- Não pode ser! – Disse ele em voz alta para si próprio – o “Mendigo da Lagoa” assassino!?! Não, essa não me entra.

AlfaZero conhecia um pouco o “Mendigo da Lagoa”. Algumas vezes havia parado junto dele, na Lagoa do Quinaxixe, para lhe dar uma esmola e, nessas ocasiões, havia conversado um pouco com ele. E, sem saber porquê, havia começado a sentir um verdadeiro afecto por aquele homem que, provavelmente, uma viragem da sorte ou alguma ironia do destino o havia lançado para aquela situação de mendigo.

“Quem terá assassinado Frederico de Assunção!?” – Interrogava-se AlfaZero, ao mesmo tempo que pegava nas chaves da sua viatura para sair. – Não me passa pela cabeça que tenha sido o “Mendigo da Lagoa”!

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5. O “Mendigo da Lagoa” apresenta-se na AngoCrime.

Ao chegar à AngoCrime, depois de ter saído da casa do seu amigo ervanário, no Cassenda, o “Mendigo da Lagoa” foi conduzido ao Gabinete do Inspector Juvenal. Este, ao vê-lo, disse à guisa de cumprimento:
-- Ah, é você, “Mendigo da Lagoa”! Fez bem em vir entregar-se, pois isso até poderá servir para atenuar a sua pena. Pensou bem. Andar fugido, pioraria as coisas pois mais cedo ou mais tarde, você acabaria por ser apanhado e a sua pena seria ainda maior. Você pensou bem.
E, em voz mais baixa, o Inspector Juvenal, perguntou:
-- Mas o que é que lhe deu “Mendigo da Lagoa”?! O que é que houve para matar o homem?
-- Não fui eu que matei o Frederico de Assunção. Eu ontem não estive na lagoa -- respondeu o “Mendigo da Lagoa”, com voz pausada.
O Inspector Juvenal levantou-se da cadeira num ímpeto como se tivesse sido picado por alguma coisa e disse, meio encolerizado, olhando directamente para o “Mendigo da Lagoa”:
-- Ó “Mendigo da Lagoa”, está a brincar?! Então dezenas e dezenas de pessoas com quem falámos viram-no, ontem, na lagoa e você diz que não esteve na lagoa? Também é preciso ser descarado! Olhe que isso vai-lhe piorar as coisas.
-- Juro-lhe que eu ontem não estive na lagoa, Inspector! – Repetiu, com firmeza, o “Mendigo da Lagoa”.

Nesse momento, alguém bateu à porta. O Inspector Juvenal foi abrir. Era o detective AlfaZero.
-- Ah, ainda bem que chegou detective AlfaZero para me dar aqui uma ajuda com o “Mendigo da Lagoa”. Então não é que ele me está a dizer que não esteve na lagoa ontem quando dezenas de pessoas o viram lá? Olhe que isto é descaramento demais!

O detective AlfaZero sentou-se, olhou para o “Mendigo da Lagoa”, depois para o Inspector Juvenal, depois para o “Mendigo da Lagoa” novamente e, por fim, virando-se para o Inspector Juvenal disse, em voz baixa e pausada:
-- A não ser, Inspector Juvenal, a não ser que… que haja dois “Mendigos da Lagoa”.
Ao ouvir estas palavras, o Inspector Juvenal tornou a sentar-se com rapidez como se tivesse sido empurrado para a cadeira e, olhando meio admirado para AlfaZero disse, quase num murmúrio:
-- Dois “Mendigos da Lagoa”?!!… Será possível, detective AlfaZero!!?
-- Sim, Inspector Juvenal, dois “Mendigos da Lagoa”! Um “Mendigo da Lagoa” verdadeiro, que é este aqui e outro “Mendigo da Lagoa” falso que toma o lugar do verdadeiro quando as dores de barriga o atacam e ele não pode descer para a Lagoa.

O Inspector Juvenal estava perplexo a olhar para AlfaZero ao mesmo tempo que dizia, como se estivesse a falar para si próprio:

-- Então terá sido o ”Mendigo da Lagoa” falso que cometeu o assassinato?! E terá igualmente sido ele que escreveu o pedaço de papel encontrado preso ao pescoço de Frederico de Assunção?! Custa a crer detective AlfaZero, mas… mas é provável… muito provável… mas o que é que lhe leva a pensar assim, detective AlfaZero?

-- Intuição de detective, Inspector Juvenal! Ossos do ofício! A minha intuição diz-me que quem assassinou “Frederico de Assunção” não está aqui nesta sala neste momento. Vai ser preciso procurá-lo! Vai ser preciso identificá-lo e detê-lo para que pague pelo crime que cometeu.

-- Mas, detective AlfaZero, neste momento as provas apontam para o “Mendigo da Lagoa”… este aqui… como vamos provar que não foi ele? Onde vamos buscar o outro “Mendigo da Lagoa” que costuma ocupar o lugar dele quando ele não aparece na lagoa?

-- Vai ser preciso investigar, Inspector Juvenal – disse o detective AlfaZero, tendo logo a seguir, acrescentado:
-- Mostre-me, por favor, o pedaço de papel escrito que foi encontrado no cadáver de Frederico de Assunção.

O Inspector Juvenal levantou-se, foi a um armário de ferro que se encontrava num dos cantos da sala, abriu uma gaveta, tirou o invólucro de plástico onde havia sido colocado o pedaço de papel, e entregou-o a AlfaZero. AlfaZero examinou, primeiro, o invólucro de plástico. Era um invólucro normal, desses que se usam para resguardar passes de trabalho ou outros do género. A fita era igualmente usual, de cor azul, dessas que se vendem em qualquer casa da especialidade. AlfaZero retirou o pedaço de papel que se encontrava dentro do invólucro de plástico. Era um tipo de papel vulgar, sem quaisquer características especiais. AlfaZero examinou cuidadosamente o que nele estava escrito:

AGRADEÇO A TUA ESMOLA, FREDERICO.
MAS HOJE VIESTE PARA MORRER.
FIZESTE-ME SOFRER MUITO, FREDERICO.


Estava escrito à mão mas em maiúsculas.

-- Notou alguma coisa de especial, detective AlfaZero? – Perguntou o Inspector Juvenal depois de alguns minutos.
-- Não, Inspector Juvenal, não detectei nada de especial. Apenas fico com a impressão que desta pequena mensagem transparece um desejo de vingança.
-- Sim, foi essa a impressão com que eu também fiquei.
-- Inspector, quais são os vossos procedimentos agora em relação a este caso? – Perguntou o detective AlfaZero olhando alternadamente para o Inspector Juvenal e para o “Mendigo da Lagoa”.

-- Bem, o caso vai ter de seguir os seus trâmites normais. Nós vamos fazer entrega do processo aos órgãos competentes, com a matéria que temos em mão, e eles depois encarregar-se-ão de dar andamento ao processo. Quanto ao “Mendigo da Lagoa”, ele ficará, naturalmente, em prisão preventiva até ao julgamento ou até que se identifique o “Mendigo da Lagoa” falso que terá cometido o assassinato.

-- Inspector Juvenal, por razões profissionais e porque sinto um grande afecto pelo “Mendigo da Lagoa”, e se não há inconveniência por parte da AngoCrime, eu vou encarregar-me deste caso. Vou tentar descobrir quem assassinou o Senhor Frederico de Assunção, porque eu estou absolutamente convencido, e espero que a minha convicção não me traia, que quem o assassinou não foi aqui o “Mendigo da Lagoa” – disse AlfaZero, apontando para o “Mendigo da Lagoa” quando pronunciou as últimas palavras.

O Inspector Juvenal, por sua vez, disse:
-- Detective AlfaZero, a AngoCrime não vê qualquer inconveniente em que você avance com as suas investigações. E até agradece. Estamos disponíveis para todo o apoio que for necessário. Desejamos-lhe boa sorte e que, sinceramente, consiga desvendar este caso para que, caso o assassino seja outra pessoa, aqui o nosso amigo “Mendigo da Lagoa” não seja alvo de uma terrível injustiça.

-- Vou empregar todos os meus esforços para que não se cometa uma injustiça – disse o detective AlfaZero despedindo-se do Inspector Juvenal e do “Mendigo da Lagoa”.

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6. O detective AlfaZero inicia a investigação do caso
“O Assassinato de Frederico de Assunção”.

Já no seu apartamento-escritório, localizado na bela e movimentada Avenida Marginal, da não menos bela e trepidante cidade de Luanda, a capital de Angola, o detective AlfaZero, sentado num dos sofás da sua pequena sala de estar, analisava o caso que tinha agora entre mãos. Ele acreditava plenamente no “Mendigo da Lagoa” quando ele dizia que não havia estado na lagoa na noite do assassinato de Frederico de Assunção, devido às suas dores de barriga. AlfaZero estava absolutamente convencido de que o assassino de Frederico de Assunção não havia sido “o Mendigo da Lagoa” mas sim alguém que se fez passar por ele. Quer dizer, alguém que, no dia do assassinato de Frederico de Assunção, dia em que o “Mendigo da Lagoa” não havia descido para o seu local habitual na Lagoa do Quinaxixe, devido às suas dores de barriga, vestiu-se tal e qual ele se veste, colocou na sua face uma barba branca e um bigode iguaizinhos aos do “Mendigo da Lagoa”, colocou na cabeça um chapéu igual ao que ele costumava usar e ocupou o lugar dele. Recebeu as esmolas que lhe foram dadas e, enfim, toda a gente pensou que se tratava do “Mendigo da Lagoa” verdadeiro.

Como encontrar agora essa pessoa que se fez passar pelo “Mendigo da Lagoa”?

AlfaZero decidiu iniciar as suas investigações indo à casa de Samuel Dongala, o amigo ervanário do “Mendigo da Lagoa”, residente no Bairro Cassenda e onde o “Mendigo da Lagoa” se encontrava na manhã em que o corpo de Frederico de Assunção foi retirado da lagoa, a fim de confirmar se ele havia dito a verdade.

-- Tudo absolutamente verdade, Senhor detective AlfaZero – confirmou Samuel Dongala – ele veio cá logo de manhã bem cedo pedir-me uns medicamentos para uma dor de barriga que, segundo ele, não o deixara dormir. Aliás, não é a primeira vez que ele cá vem por causa das dores de barriga. E mesmo antes de ele ter ouvido o comunicado da AngoCrime na televisão acusando-o de ter morto Frederico de Assunção, ele disse-me que na noite anterior, ou seja na noite em que foi morto Frederico de Assunção, não havia descido para a lagoa devido às dores de barriga.

-- Muito obrigado, Senhor Samuel – despediu-se AlfaZero apertando a mão a Samuel Dongala.

AlfaZero dirigiu-se seguidamente para o local onde ocorreu o assassinato, ou seja, para a própria Lagoa do Quinaxixe. Ali, AlfaZero fez um exame ao local onde costumava sentar-se o “Mendigo da Lagoa”. Olhou para o pilar do prédio inacabado onde o “Mendigo da Lagoa” se costumava encostar. Olhou para os pequenos arbustos que separavam o referido pilar e a margem da lagoa. Abaixou-se, colocou as mãos no capim, vasculhou e… viu alguma coisa a brilhar sob o reflexo do sol… tirou a areia que parcialmente tapava o objecto e então viu que se tratava de um pequeno molho de chaves, numa argola. Três chaves e uma pequena moldura em forma de coração contendo a imagem de um bebé do sexo masculino. Por trás da imagem havia sido escrito o seguinte: “meu querido menino, nunca te esquecerei.”

AlfaZero guardou cuidadosamente o molho de chaves. Continuou a procurar, a vasculhar mas não encontrou mais nada pelo que regressou para o seu apartamento-escritório.

Enquanto preparava uma salada de tomate para acompanhar com uns ovos e umas batatas fritas, AlfaZero pensava no molho de chaves que havia encontrado na lagoa. De quem seria o molho de chaves?! Quando teria sido ali deixado?! Seria do próprio “Mendigo da Lagoa”?! Seria da pessoa que havia assassinado Frederico de Assunção?! Seria do próprio Frederico de Assunção?! Seria de qualquer outra pessoa que passara por ali e o havia perdido?

Bom, AlfaZero pensou que o melhor seria ir perguntar ao “Mendigo da Lagoa” se o molho de chaves lhe pertencia. E assim fez. E a resposta foi negativa.
Alfa Zero pensou então em colocar um anúncio na rádio e na televisão do seguinte teor:
“Foi encontrado na via pública, mais precisamente na Rua XXX, um molho de três chaves. O mesmo será entregue, no local x, a quem provar pertencer-lhe.”

AlfaZero delineou a estratégia deste anúncio da seguinte forma: caso o molho de chaves pertencesse à pessoa que havia assassinado Frederico de Assunção e caso essa pessoa aparecesse para levantá-lo, haveria então a possibilidade de se conhecer a tal pessoa e de se tentar provar que havia sido essa pessoa a autora do assassinato. Por essa razão, não seria mencionado no anúncio que o molho de chaves havia sido encontrado na lagoa e nem seria mencionado que no molho estava incluída uma moldura com a imagem de um bebé.

Assim AlfaZero pensou e assim fez. O anúncio foi colocado na rádio, na televisão e em alguns dos jornais mais lidos da capital. Entretanto, AlfaZero completamente disfarçado, ficaria no local de recepção para a entrega do molho das chaves caso alguém aparecesse a reclamá-las.

Por volta das 10 horas do dia em que saiu o anúncio, apareceu no local da recepção uma Senhora, que aparentava ter entre 50 e 60 anos de idade. O detective AlfaZero, totalmente disfarçado, recebeu-a:
-- Muito bom-dia, Senhor – cumprimentou a Senhora dirigindo-se a AlfaZero.
-- Muito bom-dia, minha Senhora. Deseja alguma coisa?
-- Sim, eu venho responder ao anúncio do molho das chaves. Eu perdi um molho com três chaves de modo que queria ver se é esse que foi encontrado.
-- Nós temos efectivamente aqui um molho de chaves mas antes a Senhora vai ter de provar que o mesmo lhe pertence. É que, por vezes, vêm pessoas levantar objectos que, afinal, não lhes pertencem.
-- Sim, eu compreendo. Olhe, eu posso dizer-lhe já que no meu molho de chaves tem uma moldura em forma de coração com a imagem de um bebé – disse a mulher – e é só por isso que eu vim cá. Se não fosse por causa da moldura eu nem tinha vindo cá. É que essa moldura tem um significado muito especial para mim.
-- Olhe, então o molho de chaves deve ser mesmo seu, minha Senhora, pois vem com uma moldura em forma de coração com a imagem de um bebé.
-- Oh, então é mesmo o meu. Que sorte! Eu pensei que nunca mais o encontraria. Minha Nossa Senhora ajudou-me – disse a mulher, benzendo-se.
-- Tem uma ideia de onde o perdeu? Perguntou o detective AlfaZero, olhando-a com perspicácia.
-- Não, não tenho a menor ideia.
-- Então diga-me uma coisa. Onde utiliza as três chaves?
-- Uma é da porta da frente da minha casa, outra é de um armário que se encontra no meu quarto de dormir e outra é de uma mala diplomática onde guardo alguns documentos importantes.
-- E como é que conseguiu entrar na sua casa sem a chave? – Perguntou AlfaZero.
-- Eu sempre que saio de casa, deixo um duplicado da chave de casa num local escondido.
-- Ah, a Senhora é previdente! – Disse o detective AlfaZero, e acrescentou:
– diga-me então o seu nome, a sua idade, e onde mora.
-- Chamo-me Francisca Mutuala, tenho 52 anos de idade, sou natural da província do Kwanza-Norte e resido aqui em Luanda, no Município da Maianga.
-- Pronto, então vou entregar-lhe o seu molho de chaves. O facto de se ter referido à moldura, é prova suficiente de que as chaves lhe pertencem.
-- Oh, muito obrigada. E a mulher despediu-se e saiu.
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7. Tem início o julgamento do “Mendigo da Lagoa”.

Entretanto começava, no tribunal provincial, o julgamento do “Mendigo da Lagoa”. Começava mal para ele, pois, apesar de ele continuar a dizer que não estivera na lagoa na noite em que ocorreu o assassinato de Frederico de Assunção, algumas pessoas haviam já dito ao júri que o haviam visto no local onde ele costumava ficar, junto à Lagoa do Quinaxixe, na noite em que ocorreu o assassinato. Veremos, depois, como decorreram os dias seguintes do julgamento.

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8. AlfaZero segue Francisca Mutuala.

Logo que Francisca Mutuala saiu depois de ter recebido o molho de chaves que AlfaZero lhe entregara, este entrou na sua viatura e, muito disfarçadamente,
seguiu-a. Ela seguia a pé. AlfaZero observava-a. O andar já não era muito elegante talvez devido à idade. Era alta e forte.

Tinha entrado agora na Avenida “Marien Ngouabi”. AlfaZero não tirava os olhos dela. Ela seguia, sem parar, a passos compassados e regulares. A meio da Avenida “Marien Ngouabi” virou à direita. Seguiu por essa rua e, no segundo cruzamento, virou à esquerda. Seguiu. Já junto a um canal de escoamento de águas, subiu por uma pequena escada para atravessar o canal, que tinha, para o efeito, uma pequena ponte de madeira. Ali não havia passagem para viaturas. AlfaZero estacionou a sua viatura e, rapidamente, desceu para seguir a mulher a pé. A mulher atravessou o canal e virou à esquerda. AlfaZero seguia-a, sem a perder de vista. Muitas outras pessoas estavam a circular por ali, para cima e para baixo.

A mulher chegou junto a uma pequena casinha de adobo, passou para o quintal e despareceu.

AlfaZero esperou ali, cerca de duas horas, a ver se a mulher saía para fora. Não saiu. Na casinha não se via ninguém. Nem à frente, nem no quintal. O quintal nem sequer tinha vedação.
“Viverá aqui sozinha!?” – Interrogava-se AlfaZero. -- Será ela a pessoa que assassinou Frederico de Assunção? Como é que as chaves dela apareceram ali precisamente no local onde o “Mendigo da Lagoa” costuma ficar?


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9. Briana começa a trabalhar como empregada doméstica em casa de Francisca Mutuala.
Depois de pensar muito sobre a forma de constatar se Francisca Mutuala era a pessoa que havia assassinado Frederico de Assunção, AlfaZero decidiu, com a concordância de Briana, (uma amiga), que esta fosse pedir trabalho como empregada doméstica a Francisca Mutuala. Briana teria, assim, a possibilidade de detectar alguma coisa que tornasse Francisca Mutuala suspeita de ter assassinado Frederico de Assunção, caso tivesse sido ela, efectivamente, a assassina.

-- Como te chamas? – Perguntou Francisca Mutuala à Briana quando esta lhe apareceu em casa toda esfarrapada e com cara de fome a pedir trabalho.
-- Chamo-me Carlota, Senhora.
-- Então podes começar a trabalhar hoje, Carlota. Eu vou dizer-te tudo o que tens a fazer. Se te portares bem, depois vou ver se te arranjo umas roupinhas novas e uns sapatinhos.
-- Sim, Dona….
-- Podes tratar-me por Dona Chica.
-- Sim, Dona Chica.

E, assim, bem disfarçada de pobrezinha e com o nome de “Carlota”, a Briana começou a trabalhar como empregada doméstica de Francisca Mutuala. Desde o primeiro momento, Briana começou a sua tarefa de investigação. Ela observava tudo, ao mínimo pormenor. Notou, por exemplo, que Francisca Mutuala tinha um olhar profundamente triste. -- “O que lhe terá acontecido para que uma tristeza tão grande se reflicta no seu olhar?” – Interrogava-se a Briana. Um outro aspecto interessante que a Briana notou foi que, no quarto onde Francisca Mutuala dormia, para além da cama dela havia um berço de bebé, com um boneco grande sentado no meio da cama e alguns brinquedos à sua volta. “O que significará este berço?” – Perguntava, a si própria, a Briana.

O interior da casinha era pobrezinho. Tinha apenas três quartos. Uma sala ao centro, pequenina, e dois quartos laterais, de dormir. Tinha, atrás, mais dois pequenos compartimentos, um que servia de cozinha e outro de casa de banho. Na sala, apenas uma mesa ao centro, um pequeno rádio e um armário feito de caixas vazias de sabão.

Uma das tarefas de Briana era ir, todos os dias, por volta das 17 horas (5 da tarde), a uma padaria, comprar pão. E era num local próximo dessa padaria que ela e AlfaZero combinaram encontrar-se, quase todos os dias, para que Briana informasse de tudo o que se estava a passar, das “descobertas” que havia feito, enfim. Tudo o que a Briana fosse notando e que achasse de interesse, contaria a AlfaZero e AlfaZero dar-lhe-ia, então, instruções sobre a forma como ela deveria proceder em face de uma determinada situação.

E, assim, os dias iam correndo.


10. Prossegue o julgamento do “Mendigo da Lagoa”.

Entretanto, o julgamento do “Mendigo da Lagoa”, prosseguia. Como havíamos dito, no primeiro dia do julgamento várias pessoas disseram ao tribunal que haviam visto o “Mendigo da Lagoa” na Lagoa do Quinaxixe, na noite do crime. O advogado de defesa não teve argumentos para contrapor essas afirmações. Entretanto, para agravar a situação em desfavor do “Mendigo da Lagoa”, o júri considerou que havia sido ele próprio que havia escrito o pedaço de papel que foi posto no invólucro de plástico e colocado no corpo da vítima, com o fim de desviar a atenção das pessoas e levá-las a pensar que quem havia cometido o assassinato havia sido outra pessoa e não ele próprio. Assim, o julgamento estava a correr pessimamente mal para o “Mendigo da Lagoa” e tudo levava a crer que o homem sofreria uma pesada pena.

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A Briana prosseguia, entretanto, o seu trabalho de empregada doméstica e de investigadora. Conforme os dias iam passando, ela ia ficando mais à vontade com Francisca Mutuala e Francisca Mutuala também se ia sentindo mais à vontade com ela. Num determinado dia, Francisca Mutuala, perguntou à Briana:
-- Então, estás a gostar do trabalho?
-- Estou, sim, Dona Chica. Estou a gostar muito – respondeu a Briana, com um sorriso.
-- Eu também estou a gostar da forma como estás a trabalhar e a comportar-te. Olha, eu vou ter de sair agora. Faz uma limpeza geral à casa. No meu quarto não é necessário limpares nem arrumares que eu depois faço isso. Preocupa-te com a sala, com o quarto de banho e com o quintal. Eu vou ao Banco tratar de uns assuntos. E faz também o almoço. No meu quarto, tira só o mosquiteiro da cama para lavares. O resto deixa estar como está. Não mexas em nada.
-- Sim, Dona Chica -- respondeu a Briana.
Francisca Mutuala saiu e a Briana ficou em casa sozinha. Era a altura ideal para “explorar” a casa e em especial o quarto de Francisca Mutuala. Logo que ela saiu, Briana entrou no quarto da “patroa” para tirar o mosquiteiro para lavar conforme ela havia ordenado. Observou o quarto “de alto a baixo” e mais uma coisa interessante chegou aos seus olhos. Por cima de uma pequena mesinha de cabeceira que ficava ao lado da cama e encostada à parede, estava uma candeia acesa alimentada a óleo. A candeia estava por cima de um prato de porcelana. Briana contemplou a candeia demoradamente. Depois observou novamente o berço que já tinha visto antes e onde se encontrava um boneco grande com brinquedos à volta.
Por que será que ela tem uma vela acesa no quarto? – Perguntou-se a Briana. Dentro do quarto havia igualmente um guarda-roupas de madeira já bastante velho. Briana puxou a porta mas o armário estava fechado à chave. Onde estará a chave? – Interrogou-se ela. Deveria estar nalgum lugar dentro do quarto. Mas aonde? Briana abriu a gaveta da mesinha de cabeceira onde estava a candeia acesa, procurou ali pela chave mas não a encontrou. Subiu numa cadeira e deu uma espreitadela por cima do armário, mas também ali não estava. Espreitou para debaixo da cama, e nada, ali também não estava. Será que ela levou a chave do armário? – Perguntou-se a Briana. Levantou o colchão da cama e… não encontrou a chave mas encontrou outra coisa mais preciosa. Um casaco castanho, grande, igualzinho ao que o “Mendigo da Lagoa” costumava usar. A Briana pegou no casaco, meteu a mão num dos bolsos e… retirou-a assustada. Havia tocado em alguma coisa que parecia cabelo. Tornou a meter a mão e puxou por aquilo, devagarinho. Qual não foi o seu espanto ao ver uma enorme cabeleira branca tal e qual a que usava o “Mendigo da Lagoa”. Briana meteu a mão no outro bolso do casaco e voltou a sentir a mesma sensação de ter tocado em cabelo. Puxou, devagarinho por aquilo e, surpreendida, viu que era um bigode, todo branco com as pontas enroladas, igualzinho ao que o “Mendigo da Lagoa” usava. A Briana, mais excitada do que nunca com a descoberta, arrumou tudo conforme estava, pôs tudo em ordem, tirou o mosquiteiro e saiu para continuar a fazer as outras tarefas. Ao meio da tarde, Francisca Mutuala, chegava a casa.
-- Então Carlota, trataste de tudo?
-- Sim Dona Chica. Lavei o mosquiteiro da Dona Chica, varri o quintal, limpei a cozinha e o quarto de banho e fiz o almoço.
-- Sim senhora, estou a ver que está tudo em ordem – disse Francisca Mutuala dando uma volta pelos compartimentos da casa – está tudo limpinho! Um dia destes vais levar umas roupas velhas que tenho aí para um desses contentores do lixo que ficam aí nas ruas. Tenho aí um casaco velho que já não uso e outras coisas que depois vais levar para o lixo. Mas isso fica para outro dia. Agora vamos ver se o teu almoço está saboroso.
Francisca Mutuala sentou-se à mesa e Briana serviu-lhe o almoço.
-- Que delícia – disse ela – está bom, bom, bom.
Ao acabar de almoçar, ela disse:
-- Bem, eu agora vou descansar um pouco, que a ida ao Banco pôs-me cansadíssima. Isto agora nos Bancos é só bichas, e bichas e mais bichas. Olha Carlota, agora almoças tu e quando forem 17 horas vai à padaria comprar o pão.
-- Sim, Dona Chica.
E Francisca Mutuala retirou-se para o seu quarto para descansar.

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Briana almoçou e, às 17 horas (cinco da tarde) saiu para a padaria. Ia ansiosa para contar a AlfaZero o que havia descoberto. Ao encontrar-se com ele, disse:
-- Detective AlfaZero, nem imagina o que eu descobri.
AlfaZero olhou para ela com ar interrogador à espera que ela revelasse a sua descoberta.
-- Encontrei o casaco, as barbas e o bigode do “Mendigo da Lagoa” falso.
-- Não me digas, Briana! Aonde?!
E Briana contou a AlfaZero como havia encontrado aqueles objectos.
-- Briana – disse AlfaZero – temos de agir depressa antes que ela jogue fora tudo isso. Temos de a desmascarar enquanto o casaco ainda está debaixo do colchão dela. Temos de traçar um plano imediatamente. Olha, ao chegares a casa, diz-lhe que ouviste na padaria uns Senhores a dizerem que amanhã de manhã uma equipa da Saúde vai visitar todas as casas deste bairro para observarem as condições de higiene e se há pessoas doentes em casa, etc., etc. e que as pessoas não devem sair de casa até a equipa chegar, ouviste? Ainda bem que amanhã é sábado, pois assim a história da visita sanitária encaixa melhor. Então, amanhã de manhã eu e mais dois ou três investigadores da AngoCrime apareceremos lá disfarçados de médicos e enfermeiros. Percebeste bem, Briana?

-- Compreendi, detective AlfaZero. Então, até amanhã de manhã. Fico à espera.

Briana regressou para casa. Ao vê-la entrar, Francisca Mutuala, que estava sentada na sala, disse:
-- Ah, já voltaste? Estava-me mesmo a apetecer um pãozinho agora.
-- E estão quentinhos, Dona Chica.
-- Ah, dá cá um.
A Briana entregou-lhe o saco do pão ao mesmo tempo que lhe dizia:
-- Dona Chica, ouvi dizer lá na padaria que amanhã de manhã uma equipa da Saúde vai visitar as casas deste bairro para ver a higiene e se há pessoas doentes em casa.
-- Ah, ouviste isso? Ainda bem que hoje fizeste uma boa limpeza – disse Francisca Mutuala e acrescentou segurando nas duas pernas – até calha bem porque vou aproveitar para fazer mais uma consulta a este meu reumatismo que às vezes nem me deixa dormir. A que horas, é que eles vêm, não ouviste eles dizerem?
-- Eles vêm de manhã, Dona Chica. Até disseram para ninguém sair de casa de manhã.
-- Ah, sim, e amanhã é sábado, eles escolheram mesmo o sábado para encontrarem as pessoas em casa. Então, olha, amanhã de manhã acorda cedo e faz mais uma boa limpeza aqui à sala.
-- Está bem, Dona Chica.

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11. Marialva de Assunção telefona a AlfaZero.

Entretanto, Marialva de Assunção, o filho mais velho de Frederico de Assunção e que agora era o Presidente do Grupo Frederico de Assunção que incluía a Companhia “Petróleos do Norte”, uma das maiores companhias petrolíferas do mundo, telefonou a AlfaZero:
-- Alô! – Disse AlfaZero ao atender a chamada.
-- Alô, detective AlfaZero. Fala o Marialva de Assunção. Não sei se já ouviu falar de mim, eu sou…
-- Ah, sim, Sr. Marialva, já o conheço e sei que é o filho mais velho do Sr. Frederico de Assunção. Aproveito para lhe dar os meus pêsames.
-- Muito obrigado detective AlfaZero. Olhe, estou a telefonar-lhe pelo seguinte: chegou ao meu conhecimento que você se prontificou em encarregar-se do caso do assassinato do meu pai, para tentar descobrir o seu verdadeiro assassino. Pois eu quero desde já agradecer-lhe por isso detective AlfaZero pois eu não creio que tenha sido o “Mendigo da Lagoa” quem o tenha assassinado. Que motivos teria um pobrezinho daqueles para assassinar o meu pai? Não, não creio que tenha sido ele. Eu quero é conhecer o verdadeiro assassino do meu pai para lhe cuspir na cara, entende detective AlfaZero? Quero cuspir-lhe na cara com todo o gosto! Caso necessite de algum apoio financeiro ou outro nas suas investigações, pois estarei inteiramente disponível para o apoiar. E obrigado mais uma vez por se ter oferecido para desvendar este caso.
-- Fico-lhe igualmente agradecido pela sua disponibilidade, Sr. Marialva. Caso venha a necessitar, não hesitarei em contactá-lo.

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12. AlfaZero disfarçado de médico em casa de Francisca Mutuala.

Passava um pouco das 8 horas quando a “equipa médica”, composta por um médico (o detective “AlfaZero”) e por dois enfermeiros (dois investigadores da AngoCrime, o Tobias e o Tibúrcio) chegou à casa de Francisca Mutuala. Foram recebidos pela própria dona da casa.
-- Muito bom-dia, minha senhora – cumprimentou o detective AlfaZero, que logo a seguir, acrescentou: -- eu sou o doutor Afonsino e estes dois senhores são os enfermeiros que me acompanham. Não sei se já é do seu conhecimento, nós estamos a fazer visitas de serviço às residências para observarmos as condições de higiene com vista à prevenção de doenças e também aproveitamos para fazer consultas caso alguém em casa esteja a necessitar de ser observado por um médico.
-- Muito prazer, senhor doutor! – respondeu Francisca Mutuala – eu chamo-me Francisca Mutuala e sou a dona da casa. Vivo aqui apenas com a minha empregada. Façam favor de entrar e dar uma vista de olhos à casa. É pobrezinha, mas está limpinha. Depois o senhor doutor, se fizer o favor, vai dar-me uma vista de olhos aqui ao meu reumatismo que não me tem deixado dormir.
-- Com certeza, Dona Francisca.

AlfaZero, o Tobias e o Tibúrcio, entraram. Deram uma vista de olhos aos compartimentos e ao quintal e AlfaZero disse:
-- Quanto à higiene está tudo em ordem, Dona Francisca. Não temos nada a salientar. Agora vamos então ver como anda o seu reumatismo.
-- Ah senhor doutor, não imagina como tenho sofrido com estas dores – disse Francisca Mutuala, sentando-se.
-- Tem sofrido muito, Dona Francisca?
-- Oh, se tenho, senhor doutor. Há noites que nem durmo.
-- E o reumatismo é a única coisa que a não faz dormir, Dona Francisca? – perguntou, intencionalmente, AlfaZero.
-- Desculpe, doutor, não percebi bem a pergunta. Perguntou-me se o reuma…
-- Sim, Dona Francisca, foi precisamente isso que lhe perguntei. Não haverá outros motivos que a façam permanecer acordada até, digamos, a meio da noite?
-- Só às vezes quando ando um pouco nervosa é que não consigo dormir… -- respondeu Francisca Mutuala com uma voz que, entretanto, denotava um certo mal-estar.
Então AlfaZero lançou-lhe a pergunta fatídica, a que a iria fazer vacilar e tombar nas malhas da justiça, se ela fosse a pessoa procurada…
-- E quando passa as noites fora, Dona Francisca?
-- Quando passo as noites fora?! Eu? não… não… eu não costumo…
-- Dona Francisca, a senhora costuma passar algumas noites fora, pelo menos até à meia-noite… e isso agrava o seu reumatismo, sabia?
Francisca Mutuala olhou para AlfaZero com os olhos bem abertos, sentindo que estava a ser investigada. Sentiu-se terrivelmente desconfortável junto daquele “médico”. Agora, só queria era vê-lo sair dali.
-- Senhor Doutor, noites fora!? O Senhor Doutor quer dizer que eu costumo apanhar frio e que isso agrava…
-- Sim, Dona Francisca, passar parte da noite fora de casa e só voltar depois da meia-noite agrava o seu reumatismo. A não ser que esteja bem agasalhada com um grande casacão! Mas mesmo assim… costuma usar um casaco bem grande quando sai à noite?
Francisca Mutuala estremeceu.
-- Senhor doutor, desculpe, eu não estou a compreender bem o que o Senhor Doutor está a dizer… eu… noites fora, só quando não está muito frio é que vou dar uma voltinha… eu só quero é livrar-me destas dores… não há dor maior que estas dores deste meu reumatismo…
E AlfaZero preparou outra pergunta, sarcástica, mais directa, mais engenhosa. Desta vez os alicerces de auto-defesa de Francisca Mutuala ruiriam e ela tombaria, impotente, sem forças para resistir.
-- Não há maior dor que essas do seu reumatismo, Dona Francisca? Nem mesmo as dores do remorso? As dores do remorso de se ter morto alguém?
Francisca Mutuala levantou-se num ímpeto e, meio desorientada, meio aturdida, balbuciou:
-- Eu… eu… Senhor Doutor, eu nunca matei ninguém… não sei o que o Senhor Doutor está a querer insinuar mas eu…
O detective AlfaZero prosseguiu, impiedoso:
-- Dona Francisca Mutuala, você não costuma fingir ser o “Mendigo da Lagoa”? Nunca se vestiu como o “Mendigo da Lagoa”?
Francisca Mutuala estava desorientada, sem saber o que dizer. Apenas balbuciou:
-- Eu, eu vestir-me como o “Mendigo da Lagoa… não, não… nunca…
E vociferou, embora com uma voz não muito segura:
-- Os Senhores desculpem mas por favor saiam da minha casa. Vieram aqui para me acusar de coisas que eu não fiz. Eu nunca matei ninguém. Saiam por favor!
-- Sim, Dona Francisca Mutuala, nós vamos sair. Mas antes vai ter de nos dizer quem é que costuma usar o vestuário igualzinho ao do “Mendigo da Lagoa” que está debaixo do seu colchão.
Ao ouvir estas palavras, Francisca Mutuala levou as duas mãos à cara, completamente desnorteada e a soluçar. Com uma voz entrecortada de soluços, disse:
-- Ah, então descobriram o casaco aí debaixo do colchão! Já sei quem foi, foi a Carlota! A Carlota enganou-me. Ah, como eu fui estúpida! Eu devia ter jogado fora esse casaco mas estava com receio que alguém me visse. Agora é tarde! Sim, matei-o. Matei-o, sim. Odiava-o. E ainda o odeio depois de morto, se é isso que querem ouvir. Odeio-o no inferno para onde ele foi! Odiava-o porque me fez sofrer! E esperei, durante muitos sóis e muitas luas para o matar! E o dia chegou! E matei-o!
E, completamente desvairada e sempre a chorar, correu para o berço que se encontrava no quarto, ajoelhou-se junto dele e, abraçando o boneco, disse, entre lágrimas:
-- Meu menino, meu menininho, aquele que de mim te roubou, o teu malvado pai que te roubou de mim, foi morto. Tu foste vingado, meu menino. Se ainda existes, a tua mãe procurar-te-á sempre até te encontrar. Se já não existes, descansa em paz, meu amor. Eu vou pagar pelo meu crime, mas a minha alma estará em paz, porque foste vingado, meu filhinho. Eu sabia que este momento chegaria. A tua candeia, a candeia que eu acendi para ti meu menino, vai ser apagada, agora… Mas tu viverás eternamente no meu coração, meu único filhinho a quem me negaram de te criar e até de te ver, e até de te conhecer. Não sei onde estarás. Não sei se estás vivo ou morto. Mas estarás dentro do meu coração, para sempre.

AlfaZero, o Tobias, o Tibúrcio e Briana, que entretanto se havia juntado a eles, presenciavam a cena em silêncio.

Francisca Mutuala dirigiu-se, depois, a AlfaZero, dizendo, com os olhos rasos de água:
-- Já me apercebi que os Senhores são polícias disfarçados de médico e enfermeiros.
O detective AlfaZero puxou do seu cartão de detective e disse, mostrando-o a Francisca Mutuala:
-- Sim, acertou Dona Francisca Mutuala. Eu não sou médico, eu sou detective e estes dois Senhores são investigadores da AngoCrime.

Depois, virando-se para a Briana, Francisca Mutuala disse:
-- E tu, Carlota? Por que me enganaste fazendo-te passar por empregada pobrezinha?
-- Briana não respondeu.

Em seguida, Francisca Mutuala levantou o colchão da sua cama, tirou o casaco com que se costuma disfarçar de “Mendigo da Lagoa” e entregou-o a AlfaZero, dizendo:

-- Aqui está a prova do meu crime, se a minha confissão não bastar. Dentro dos bolsos do casaco estão a barba e o bigode.

Ah, ia-me esquecendo – disse ela.
Dirigiu-se à mesinha de cabeceira onde estava o prato de porcelana com a candeia acesa, retirou a chave do armário de debaixo do prato, abriu o armário e retirou de lá um chapéu igualzinho ao que o “Mendigo da Lagoa” costumava usar. Entregou-o depois a AlfaZero, acompanhando a entrega com as seguintes palavras:
-- Faltava o chapéu. Já agora levem a indumentária completa. Já não preciso dela.
E, em seguida, deixou-se cair na cama e chorou copiosamente.

O detective AlfaZero telefonou, entretanto, ao Inspector Juvenal e, cerca de 15 minutos depois, uma viatura da AngoCrime parava junto ao canal, ao lado da viatura de AlfaZero, tendo Francisca Mutuala sido então levada para a AngoCrime. O detective AlfaZero e Briana seguiram, na viatura de AlfaZero, igualmente para a Sede da AngoCrime.

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Entretanto, o julgamento do “Mendigo da Lagoa” havia chegado ao fim e dentro de meia hora seria lida a sentença.

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13. O julgamento do “Mendigo da Lagoa” é cancelado.

O Inspector Juvenal, da AngoCrime, ao ver o detective AlfaZero, que havia chegado à Agência minutos depois da viatura que transportava “Francisca Mutuala”, disse, com um grande sorriso nos lábios:
-- Dê-me um abraço, detective AlfaZero! Parabéns por ter conseguido, tão rapidamente, “apanhar” o “Mendigo da Lagoa” falso. Quem diria que era uma mulher?!
-- Obrigado, Inspector Juvenal! Mas o maior agradecimento deverá ir para a Briana. Foi ela a grande investigadora.
-- Briana sorriu e não disse nada.
Ao entrarem para o Gabinete do Inspector Juvenal este, ao sentar-se na sua secretária, bateu com o punho direito por cima da secretária com força, e disse:
-- Bolas, estava a esquecer-me. A sentença do “Mendigo da Lagoa” deve estar já a ser pronunciada. Vamos já para o tribunal com a “Mendigo da Lagoa” falsa para pedirmos ao juiz que cancele a sentença do “Mendigo da Lagoa”. E, acto contínuo, gritou para o Tobias e para o Tibúrcio:

-- Preparem duas viaturas e ponham a Dona Francisca Mutuala numa delas. Vamos para o tribunal imediatamente onde está a ser julgado o “Mendigo da Lagoa”.

As duas viaturas “voaram” para o tribunal. Numa seguia o Inspector Juvenal, o detective AlfaZero e Briana e noutra Francisca Mutuala, o Tobias e o Tibúrcio. Quando chegaram à porta do tribunal, mal puderam entrar, pois a sala estava superlotada de gente. O Juiz já lia a sentença:

“… e, não tendo a defesa podendo contrapor as inúmeras provas acusatórias contra o senhor “XX” mais conhecido por “Mendigo da Lagoa”, este tribunal, em nome de toda a população, condena o senhor “XX” mais conhecido por “Mendigo da Lagoa”, por homicídio voluntário, a 26 anos…

Neste momento, o Inspector Juvenal gritou da porta:

-- Meritíssimo Juiz, que o tribunal não cometa uma injustiça. Quem matou o Senhor Frederico de Assunção, está aqui.

Estas palavras do Inspector Juvenal caíram como uma bomba na sala do tribunal. Todos os presentes lançaram o olhar para onde havia partido a voz. O Juiz interrompeu a leitura da sentença e, na mesa do júri, todos se levantaram para olhar para a porta.

-- O Inspector Juvenal, o detective AlfaZero, o Tobias, o Tibúrcio, Francisca Mutuala e Briana, avançaram para a mesa do júri. O Inspector Juvenal disse, então, com voz pausada:
-- Meritíssimo Juiz, Ex.mas Senhoras, Ex.mos Senhores: depois de uma árdua investigação, o detective AlfaZero conseguiu identificar e deter a verdadeira assassina de Frederico de Assunção. Ela aqui está.
-- Todos os olhares da sala caíram sobre Francisca Mutuala.
O “Mendigo da Lagoa”, que se encontrava sentado no banco dos réus, não se conteve. Levantou-se, chegou-se junto de AlfaZero e deu-lhe um forte abraço.

O Juiz, entretanto, mandou suspender o julgamento e evacuar a sala.

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14. Francisca Mutuala depõe na AngoCrime.

Antes de ser julgada, Francisca Mutuala prestou o seguinte depoimento à AngoCrime:

“Chamo-me Francisca Mutuala, tenho 52 anos de idade, sou solteira, natural da província do Kwanza-Norte, e resido no bairro da Maianga, em Luanda. Cresci na província do Kwanza-Norte e vim para Luanda quando tinha 16 anos de idade. Quando cá cheguei, senti-me perdida na grande urbe pois vinha de uma pequena vila. Vinha com projectos de estudar, trabalhar, vencer na vida. Vivia em casa de uma tia, que era de poucos recursos financeiros. Encontrar trabalho em Luanda, não era fácil mesmo como empregada doméstica ou lavadeira. Depois de tanto procurar, passei pela casa do Senhor Frederico de Assunção, o grande multibilionário. Falei com a esposa dele e ela disse-me que tinha de falar com o marido. Mandou-me esperar no quintal. Esperei até ele chegar.
-- Então rapariguinha – disse-me ele depois de ter percorrido, com o olhar, o meu corpo de alto a baixo – queres trabalhar, não é?
-- Quero sim, Senhor – respondi eu, meio amedrontada.
Ó Clotilde – chamou ele pela mulher – põe a rapariguinha a fazer qualquer coisa e depois diz-me se ela se porta bem.
E foi-se embora.

A partir desse dia, porém, Frederico de Assunção não deixava de me falar nem só por um dia e sempre às escondidas da esposa. E eu sentia, com a minha intuição de mulher, que ele me desejava. Até que… começámos um romance às escondidas da esposa dele. Ele dizia que me amava, dava-me presentes, tratava-me com todo o carinho, enchia-me de promessas. Enfim… engravidei. E foi quando engravidei, que as coisas se começaram a complicar. Depois de alguns meses de gravidez, ele disse-me que eu não podia ter aquele bebé porque essa criança iria destruir a sua vida familiar e social. Disse ele que, como membro da alta sociedade, não poderia, de forma alguma, ter um filho fora do casamento e, acima de tudo, com uma empregadinha doméstica. Então, disse-me ele, eu teria de fazer um aborto para que o bebé não nascesse. Eu opus-me a isso, desde o primeiro momento. Nunca aceitei fazer o aborto. Quando chegou a altura de ter o bebé, ele levou-me então para uma clínica escolhida por ele. Afinal, ele já havia planeado tudo. Logo que a criança nasceu, foi raptada e, segundo o que vim a saber mais tarde, foi raptada para ser entregue a ele. Desde o momento em que a criança foi retirada de mim, nunca mais a vi. Sei que era um rapazinho.

Tentei pôr o caso no tribunal mas pobrezinha e analfabeta como eu era, faltaram-me os recursos para tal. Eu nunca mais vi o meu menino. Nunca mais me deixaram vê-lo. A minha dor de mãe foi tão grande que eu passei a odiar o Frederico de Assunção com todas as minhas forças. O meu ódio por ele era tão grande que tudo o que eu desejava era matá-lo.

Nesta altura do seu depoimento, Francisca Mutuala fez uma pausa para poder chorar. Um pouco mais calma, prosseguiu:

Voltei para a província do Kwanza-Norte e lá passei alguns anos. Foram anos tristes e amargos. O meu pensamento estava sempre no meu filhinho que me havia sido roubado e que eu vira nascer num dia tão belo. E a minha tristeza era imensa por lhe ter sido negado o amor de mãe, o amor de mãe que ele nunca teve, que nunca me permitiram que eu lhe desse. Entretanto, regressei para Luanda. O ódio que eu passei a sentir pelo Frederico de Assunção era um ódio terrível e insano. Eu só queria matá-lo, mais nada. Mas como havia de matá-lo se me era difícil chegar junto dele? Então, pensei no “Mendigo da Lagoa”. (Eu e o “Mendigo da Lagoa” temos a mesma altura e quase a mesma constituição física pelo que tal se ajustava perfeitamente aos meus planos). Eu sabia que o Frederico de Assunção costumava dar esmolas ao “Mendigo da Lagoa”. Então, como o “Mendigo da Lagoa”, uma vez ou outra, não aparecia na Lagoa, (todos os dias por volta das 19h00 eu ia até à Lagoa ver se o “Mendigo da Lagoa” estava lá. Caso não estivesse, era sinal de que nesse dia ele não apareceria lá. Então, eu ia para casa rapidamente, vestia-me de “Mendigo da Lagoa” e ia ocupar o lugar dele). Caso o Frederico de Assunção aparecesse ali para lhe dar uma esmola num desses dias, eu matá-lo-ia então e jogá-lo-ia na lagoa. E foi precisamente isso o que eu fiz. Depois de muitos anos de espera, consegui, finalmente, aquilo que tanto desejava. Nesse dia, quando vi o Frederico de Assunção aproximar-se, encostei-me bem ao pilar onde eu costumava estar, rodei um pouco para a esquerda para ser ofuscada pela sombra de outro pilar e, quando ele estendeu a mão para me dar a esmola, puxei-lhe pela mão e, em poucos segundos, estrangulei-o. A sua surpresa foi tão grande, que mal pôde reagir. Tudo se passou em fracção de segundos e ninguém, dos que ali passavam, se apercebeu de alguma coisa. Depois, pendurei no seu pescoço, preso por uma fita o invólucro de plástico que continha o pedacinho de papel que escrevi. E, calmamente, fiz rolar o corpo dele, devagarinho, silenciosamente, para a Lagoa. Tudo saiu perfeito, como eu planeara. Agora, estou pronta para pagar pelo meu crime. Muito obrigada.

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-- E lá se foi mais uma vida deste mundo – disse o Inspector Juvenal com um suspiro.
-- Os fins justificam os meios, Inspector Juvenal, ou, neste caso, eu diria que os meios justificam os fins – disse, filosoficamente, o detective AlfaZero ao mesmo tempo que se levantava para, juntamente com o Inspector Juvenal, abandonar a sala.
-- E onde andará o filho dela?! – Perguntou o Tibúrcio quase que para si próprio.

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15. Marialva de Assunção telefona a AlfaZero.

Estavam eles a sair da sala onde Francisca Mutuala havia prestado o seu depoimento, quando o detective AlfaZero recebeu uma chamada no seu telemóvel. Era de Marialva de Assunção, o filho mais velho de Frederico de Assunção e Presidente da “Petróleos do Norte”. AlfaZero levou o telefone ao ouvido:
-- Alô?
-- Alô, detective AlfaZero. Fala o Marialva de Assunção.
-- Ah, como tem passado Sr. Marialva?
-- Menos mal, detective AlfaZero. Olhe, estou a telefonar-lhe pelo seguinte: em primeiro lugar, quero dar-lhe os meus parabéns por ter encontrado, finalmente, o assassino, ou melhor, a assassina do meu pai. Tenho aqui um cheque preparado para si, como recompensa dos seus serviços, e que lhe é oferecido pela “Petróleos do Norte”.
-- Oh, muito agradecido, Sr. Marialva.
-- Em segundo lugar, detective AlfaZero, não sei se se recorda que, quando lhe telefonei para lhe agradecer pelo facto de se ter oferecido para investigar este caso, eu disse-lhe que lhe daria todo o meu apoio e que o que eu queria era cuspir na cara do verdadeiro assassino do meu pai logo que ele fosse detido. Lembra-se detective AlfaZero?
-- Lembro-me, lembro-me perfeitamente, Senhor Marialva.
-- Pois eu quero cumprir a minha promessa, detective AlfaZero. Por favor, esperem por mim um pouco que eu quero conhecer quem matou o meu pai para depois lhe cuspir na cara com desprezo.
-- De acordo, Senhor Marialva, ficaremos aqui à sua espera.

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O detective AlfaZero virou-se para o Inspector Juvenal e disse-lhe que Marialva de Assunção havia pedido que esperassem um pouco.

-- Vamos esperar na sala --- disse o Inspector Juvenal.

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16. Marialva de Assunção encontra-se com Francisca Mutuala.

Passados cerca de vinte minutos, Marialva de Assunção chegava à Sede da AngoCrime. Depois dos cumprimentos, o detective AlfaZero disse, apontando para um compartimento à direita:
-- Ela está naquele compartimento. Vamos para lá.
Marialva de Assunção, o Inspector Juvenal e o detective AlfaZero dirigiram-se para o compartimento indicado por este. Francisca Mutuala estava sentada. Marialva de Assunção olhou para ela e principiou a dizer:
-- Então foi você que assassinou…
Marialva de Assunção sentiu, porém, a voz prender-se-lhe na garganta e não conseguiu dizer mais nada. Ao olhar nos olhos daquela mulher sentiu uma sensação que ele nunca havia sentido na vida. Sentiu o sangue a ferver, a chamar. Ao olhar para os olhos tristes e doces daquela mulher, o amor de mãe, o verdadeiro amor de mãe que ele nunca teve, aflorou, grandioso e sublime, intransponível e inigualável. E, num ímpeto, sem saber como, a palavra saiu-lhe da boca, repentina, inesperada, imparável!
-- Mãe – disse ele num murmúrio – mãezinha!
Francisca Mutuala sentiu igualmente um alvoroço enorme invadir-lhe o coração quando olhou para Marialva de Assunção. O sangue estava a chamar… Levantou-se, abraçou o filho e, a chorar, num choro misturado de tristeza e de alegria, de saudosismo e de euforia, disse apenas:
-- Ah, és tu meu menino?! Estás um homem! Que saudades eu tinha de ti!

__________ xxx __________

17. Conclusão.

Francisca Mutuala foi julgada e condenada por ter assassinado Frederico de Assunção. Beneficiou, porém, de uma atenuante por ter sido privada, contra a sua vontade, de criar e até de ver o seu próprio filho.
____________________________

Francisca Mutuala, depois de ter saído da cadeia, foi viver numa residência de luxo que o filho lhe ofereceu e ali viverá, confortavelmente, os dias de vida que ainda lhe restam. O filho perdoou-lhe por ter morto o pai, pois, segundo ele, “o seu pai tinha sido muito mau não só para a sua mãe, mas até para ele próprio”.
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Quanto ao ”Mendigo da Lagoa”, continua a viver na sua casinha de adobo no bairro Catambor e todos os dias, quando as dores de barriga não o atacam, desce para a Lagoa do Quinaxixe, para as suas esmolas. O detective AlfaZero foi conhecer a sua cabana no bairro Catambor e, quando ele não pode descer para a Lagoa, para as suas esmolas, leva-lhe sempre qualquer coisa para comer.
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Saibam os leitores também e já para terminar que, Marialva de Assunção chamou o detective AlfaZero ao seu escritório para lhe entregar o cheque que lhe havia prometido, como recompensa por ter descoberto a verdadeira assassina do pai, que, por ironia do destino, era afinal a sua própria mãe. E sabem de quanto era o cheque? Bem, o melhor é não dizer para não assustar os leitores. Só o que posso dizer é que a quantia tinha muitos zeros…

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Escrito por
Helder Oliveira
(Helder de Jesus Ferreira de Oliveira)
(Do Livro (não publicado)
“Detective AlfaZero em Acção”

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© copyright
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-- Helder Oliveira --
(Helder de Jesus Ferreira de Oliveira)


 
Autor
HelderOliveira
 
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