Regularmente tenho tido a visita de um rosto que me observa nas horas mais silenciosas e escuras...
Não faz muito tempo, uma pessoa veio viver conosco em casa, na esperança de curar-se de uma dependência severa. No entanto, em suas crises de abstinência, rondava a casa toda, perambulando altas horas da noite, resmungando e soltando gemidos sem sentindo, batendo no basculante das janelas, chorando na escuridão. Ninguém tinha paz! Por ser uma pessoa muito cara, suportamos isso por alguns meses, inclusive a maldita mania que ele tinha de capinar o terreiro atrás da casa, à noite e em alta madrugada, batendo a enxada no cimento, o que provocava um barulho insuportável e irritante.
Logo foi acometido por uma gripe que evoluiu para algo pior, voltando para casa e vindo a falecer alguns dias depois, infelizmente.
Alguns meses se passaram. Numa noite fui colocar comida para o meu cachorro, um dog alemão castanho claro que dorme atrás da casa, perto do celeiro. Um lugar abandonado há anos, escuro e solitário, e que lembra um saguão de um campo de concentração nazista. As minhas passadas por lá sempre foram breves e largas. Como escritor sou sensível a manifestações do sobrenatural, mesmo que sejam só obra da minha cabeça. Depois de proceder à colocação da ração, eis que ao me levantar percebo um rosto entre os galhos do limoeiro. Fixei as vistas para compreender melhor o que eu via, não querendo acreditar na obviedade da visão, procurando ali uma pareidolia, ainda que piscasse os olhos pra mim, observando-me insistentemente sem desviar o foco, com uma curiosidade desconcertante. Notei certa semelhança com a pessoa morta há pouco, e esperei que desaparecesse. Como não desapareceu, eu saí dali.
Outro dia assistia a um filme, quando percebi que pela fresta da janela entreaberta, o mesmo rosto me olhava de quina, ainda imóvel, sem esboçar nada, apenas breves piscadelas. Parece apenas esperar que eu saia e o ignore. Não parece saber que ele está ali, parece inconsciente do que o cerca, embora, ou em mal hora, me encare.
Não raras vezes, vou abrir alguma porta ou armário, e lá está ele outra vez, ao lado do vasilhame de café. Sempre digo a mim mesmo que vou erguer a mão para tocá-lo, mas nunca tenho coragem, apenas me afasto. É nitidamente um rosto, não uma cabeça, um rosto.
Outro dia eu estava tomando banho, quando peguei a toalha para me enxugar. Quando acabava de secar o meu cabelo e a retirei da frente dos meus olhos, lá estava o rosto, entre o armarinho do banheiro e a porta. Não entendo se quer me assombrar ou me dizer alguma coisa. Seja como for, ele está aqui ao meu lado agora, perto do guarda-roupa, enquanto escrevo.
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