Contos : 

Jardim D'estrelas

 
A vida é uma batalha que se luta dia após dia. Todo mundo sabe, mesmo aqueles que fingem ignorar isso para viverem melhor. Rico ou pobre, sul-americano ou escandinavo, todo ser humano luta contra tudo e contra todos, para alcançar o outro dia. Lutamos contra as bactérias, para que continuemos mais fortes do que elas... Contra os virus, para alcançarmos o outro dia ainda inteiros. Lutamos contra a gravidade, contra a pressão atmosférica. Claro, até que um dia os dois nos curvem contra o chão, mas no entanto, lutamos.... Obesidade ou anorexia, comer muito... comer pouco. Padrões de beleza da cultura atual, ser bonito, ser feio, fazer chapinha... Negro, branco - dualidades que se traduzem em conflitos diários, que de tão recorrentes nos deixaram dormentes, e sequer percebemos que se trata de uma luta. Lutamos para sermos aceitos. A minha cultura e o meu modo de ser é melhor do que o do outro. O meu bairro é melhor... não é, mas é... Diz a música, e um sábio muito antifgo, que é de batalhas que se vive a vida. E é mesmo! Não precisa filosofar para se chegar a essa conclusão. Qualquer um debruçado numa mesa de bar - principalmente eles - sabem disso.
Mas a maior batalha de todas é contra si mesmo. Os outros algozes são só para nos despistar. O eu e todas as suas necessidades, físicas e psíquicas, é o maior inimigo que alguém poderia ter. Já prega o budismo a total ausência de desejos, e a serenidade....
Fui confrontado por mim mesmo um dia, numa noite sem estrelas, quando ao pé da minha cama uma sombra me apareceu! Era uma sombra verdadeira, que de repente havia se posto de pé. Notei uma familiaridade logo de cara. Havia algo ali que me era profundamente íntima. Enquanto nos olhávamos - ela me olhava - pois tinha os olhos vermelhos vívidos, como uma tocha acesa na escuridão! Notei pelo formato do cabelo, da silhueta do corpo, da forma de se mexer... que se tratava de mim mesmo! Uma segunda versão minha, como nos contos antigos de todas as civilizações, o dopelganger nórdico, o duplo-que-anda dos contos latinos. O seu lado mais sombrio que quer tomar-lhe a existência. É como quando uma pessoa perde completamente a sua personalidade, e um belo dia de manhã aparece totalmente diferente e todos estranham tamanha mudança. Eu conheço muitos assim. Naquela manhã seria eu a acordar diferente?
Eu me levantei da cama e encarei aquela sombra. Era um espelho na penumbra, e eu via eu mesmo diante de mim, embora não distinguisse os meus traços, eu sabia que era eu pela forma. Estávamos nos estudando. Eu me conhecia já a bastante tempo para saber que não seria uma luta fácil contra eu mesmo. Como vencer alguém que lhe conhece profundamente? Conhece seus medos, suas fraquezas, seus limites, seus desejos... Não há mais terrível adversário! Por muito anos eu o havia enfrentado, muitas vezes lutei contra mim mesmo refletido nos meus impulsos menos nobres, mas naquela noite, eles haviam se materializado feito sombra diante de mim.
Era algo mais escuro em meio às trevas já profunda. Algo de pé em forma de homem, que embora ainda não seja um por completo, o deseja ser. Digladiamos magnificamente, transportados a um lugar amplo, ou teriam sido as paredes do quarto que se perderam na escuridão?! E a cada movimento meu, outro era exatamente repetido pela sombra, de ação oposta e perfeita, pois éramos a mesma coisa. Como um menino que brinca com a sua imagem na frente de um espelho. Nenhum dos dois poderia vencer, pensei. Até perceber que o humano ali era eu, e quem estava fadado à fadiga física, e consequentemente, à derrota, era eu!
Não havia como vencer algo inumano. Algo que tem todas as suas cartas, menos as suas fraquezas... Mas eu estava decidido que lutaria até que não me restassem mais forças físicas, e a sombra herdasse apenas uma casca vazia e sem sentido. Eu a mantive presa dentro de mim por todos esses anos, mas eu não queria ser mantido preso dentro dela por momento algum.
Quando cai no chão, já quase sem energias, por acaso - se é que existem acasos - vi uma única estrela no céu. Uma única! Brilhava ela solitária em meio a toda aquela noite escura. Mas que droga, ela era a coisa mais linda em todo aquele céu infinitamente escuro! Um ponto que era maior que o infinito! Ela não precisava ser grande, ela só precisava brilhar... para que alguém um dia olhasse para ela, no momento certo e na hora certa. Então eu me lembrei... que sim, a sombra conhecia os meus cantos mais escuros... mas nada ela sabia dos mais claros. Uma sombra não vive onde tem luz, a não ser se for para ser jogada ao chão, rastejando eternamente ao facho da luminosidade. Então, das minhas fraquezas nos cantos mais escuros da minha alma ela conhecia, mas nada sabia da força que eu tinha nos lugares mais claros! E sim, era lá nesse lugar especial que estão guardados os momentos mais memoráveis de uma vida, os olhos brilhantes que foram vistos, as lambidas de um cachorro que foram tomadas, o sorriso desinteressado de alguém, a lembrança de um mártir, a felicidade que se sente pela vitória de alguém que não a sua. O abraço de uma criança, o melhor sonho que já se teve, o amor desinteressado que recebeu... Que sombra poderia vencer isso?
E por não ter conhecido o meu melhor lado, ela perdeu. Naquele momento, uma luz cresceu em mim na altura do peito, e na tentativa inútil da sombra fugir, ela se despedaçou em milhares de diminutas luzes prateadas, que decorou a minha noite como flores num jardim. Quando é noite e olho pra cima, lembro que cada estrela representa o melhor de mim. E quando é dia, em que o sol - estrela - despeja em meu rosto mil raios cintilantes, vejo como o melhor de cada um de nós brilha melhor, quando visto mais de perto.


j

 
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London
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