Sim, evidentemente! Quando fui convidado para aquela pousada foi o dia mais feliz da minha vida! Quem não ia querer passar seis dias no mais completo hotel que já se teve notícia? Entre montanhas cobertas de sereno, lagos límpidos espelhados e bosques imensos que subiam e desciam serras? Era a coisa mais linda que já vi! E a vida de rei?! Spa, massagens, escaladas, tirolesa, piscinas térmicas! Era bom demais pra ser verdade!
Mas um dia a ficha cai. A vida não é tão boa assim, não pra mim. Vamos então à realidade:
Lá estava eu, entre risos e mergulhos, passeios no campo e cavalgadas, até que então chegou a derradeira hora: o almoço! Imagina a comida num lugar desses?! Cara, o lugar era um paraíso, e a minha boca caia só de pensar no almoço. Olha o café da manhã: Empada, pastel, croquetes, mães-bentas, brevidades, pães de queijo, brioches, sonhos, rosquinhas, quebra-quebras, engorda-padres, quero-mais, suspiros, broinhas de fubá, peru, doce de coco, doce de leite, papo-de-anjo, baba-de-moça, ambrosia, doce de abóbora, doce de batata-doce, doce de doce, e mais umas dezenas de outras qualidades de alimentos, que o meu conhecimento culinário não fez por bem reconhecer, pelo menos não à primeira vista.
Diante disso, ao meio-dia eu era o primeiro da fila. Lá estava eu, ante a mais regalada mesa que criatividade alguma, por mais esfomeada que fosse, poderia imaginar: Ora-pro-nóbis, quiabo, pernil recheado, pernil sem recheio, pato a caçadora, rabada, suflê, bisteca com mandioca, mandioca sem bisteca, bolo de palmito, carne de panela, pé de galinha, só a galinha, coxão duro com batata, estrogonofe de carne, picanha ao forno com sal grosso... com sal fino, filé a parmegiana, picadinho de carne ao vinho, carne moída a la dona fia...
E assim, desse modo, lá vai eu, sete quilos mais gordo, e feliz, agradecer ao cozinheiro da pousada.
O hotel era maravilhoso, quase um palácio, mas a cozinha... Já haviam me dito: Jamais conheça a cozinha de lugar algum. Mas ali já era apelação.
Um salão enorme no subsolo, que no início me desencorajou a entrar. Mas eu precisava agradecer ao cozinheiro de qualquer maneira, e quem sabe, pegar uma ou outra receita...
Mas, não dava pra acreditar que aquilo era a cozinha! Não havia ninguém lá... apenas panelas imensas onde caberia um boi inteiro e utensílios enferrujados e gandolas ensanguentadas, pendurados em todos os cantos. O local parecia mais um matadouro, só que um matadouro macabro. Em cima de uma grande mesa de madeira, ao lado de uma lareira fervente onde borbulhava um caldeirão enorme, estavam restos de carnes cruas, onde eu fingi não ver um ou dois dedos apontando pra cima, e algo que me lembrou um cotovelo. Talvez dois ou três narizes, mas preferi pensar que fossem sobres de galinha.
Prendi a respiração. Sai de fininho, passo após passo. Mas quando penso que não, algo me pega pelos tornozelos... Ignorei. Tentei continuar andando, mas aquilo veio arrastando junto comigo, não soltava! Apertou de novo o meu tornozelo, e veio meio que escalando a minha perna. Fui forçado a olhar pra baixo!
Era um arremedo de gente, magro, esguelado, quase só osso:
-Finalmente! - falou com dificuldades. - Me ajude!...
-E quem vai me ajudar - respondi de pronto, com o coração na garganta.
-Ele está voltando... há 23 dias estou escondido aqui... mas ele nunca saía...
-Vinte e três dias? Conversa!
-Cara, eu pesava 96 quilos...
-É, realmente, 23 dias... Mas quem nunca saía daqui?
-Ele! - respondeu apontando alguém atrás de mim!
Um homem imenso e deformado, vestido de cozinheiro, com um cutelo enorme na mão.
E aqui estou eu... Sabe por que não fui servido aquele dia? Digamos que hoje me chamam de Marisa, mas naqueles dias eu era Mário. E aliás, eu tenho convites para uma semana gratuita na pousada, quem quiser, é só pedir. Envio via sedex ou mala-direta.
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