À Sorte do Tempo
[[A criação nasceu do tédio.
Um pequeno menino – poderoso o suficiente
Cansou-se da solidão eterna
E criou-nos para divertir-se
[Dizem uns que para amar-nos]]]
I
Eu não colhi os girassóis cor-de-gema
Nem corri os campos eternos e milharais
Não beijei a mais bela moça da vila
Ou pedi-a em casamento
Quase nada fiz, e quase tudo há que se fazer
E eu, parado, olho para mim mesmo e digo:
Falácia!
Não corri os campos de Dublin
Nem chorei ao som do sussurro dos ventos
Não atendi ao chamado à minha alma
Tudo do meu legado são lamentos
Lamentosos sonhos do frio do inverno
Eu não segurei a pequena mão dum filho
Nem decidi chamá-lo Amadeu, Joaquim ou Mateus
Nem o ensinei a equilibrar-se na bicicleta
Não o vi deixar nossa casa, esboçando um desolado adeus
Na ponta dos dedos...
Não, eu não hasteei a bandeira
Nem com amor à minha terra servi
Não é que me falhe a memória:
É que tão poucas há,
Que tenho medo de descobrir
Que, enfim, não existi
II
A morte é uma mãe indesejada -
Somos todos feitos de morte
Só não há morte onde não há vida
Do que fugimos, então?
É que temos medo, profundo e indizível medo
Do regresso aos braços afáveis
Daquele vazio eterno, sem sons, cheiros ou cores
O exato vazio que conhecemos desde o início
Mentira – Não conhecemos nada!
Só há vida quando há sensação.
III
Vagueio por uma memória
Como quem dá uma volta solitária
Num fresco bairro duma noite de verão
E faço o que faço nos sonhos: procuro pela casa
O lar perdido dos contos, belos contos antigos
O lugar que inspira poeta mais do que o faz o ópio
E, que são as memórias, senão bairros?
Uns claros e infantis,
Outros escuros, afastados, esquecidos
Que é um homem
se não o conjunto de suas memórias?
Sim, empenho-me na busca pelo lugar
Gente amada espalhando-se pelos cômodos
O cheiro – eterno cheiro do sabonete barato
O antigo violão derramando acordes no início da noite...
Memórias e presságios – pesares e amores sutis
(Como quem ama secretamente o pudim e a calda
E assalta secretamente a geladeira, na madrugada)
Memórias: facas de dois gumes – sem cabo
Se não queres com elas cortar-se, não vivas
IV
Parece a mim que tenho cento e tantos anos
Vejo-me perdido num mundo jovem e pueril
Parece a mim que sou um estranho, velho estranho
Esquecido neste mundo por pura negligência
Forçado a assistir ao ininterrupto curso dos mundos
Forçado à terrível sina humana: a impotência diante das coisas
V
Se não pude, ainda, desistir
É que há laços que me erguem, tão sutis
Como borboletas verdes – vestidas de esperança
Que trazem nas asas o prelúdio das boas-novas
Dos abraços nunca dados, dos ombros nunca cedidos
Dos maus-amores prometendo reposição
Como desistir diante de tudo?
Como pode o pesar superar a beleza?
Ah, na alma machucada, não há lógica nem cura
O homem torna-se mais dilema
Que o comum de sua própria natureza
Os fins de tarde revitalizam-no e entristecem-no
Perde-se entre dois mundos...
VI
Ainda não aprendi a dirigir
Que lástima! Ah, que vacilo
E tão fácil a mim parece
A mão nas alavancas, o pé no acelerador
Vrummmmm
Tomara que haja alguém
Que queira ensinar-me
VII
Perdi meu espírito pairando
Sobre umas águas cristalinas
Não sei nem qual o país!
Sei que o cheiro doce e meio frio
Enchem-no os pulmões
(E lá espírito tem pulmão!)
Perdi-o dentro duma canção
Que dizia que, no final,
O amor que levamos
É igual ao amor que fazemos
Voa lá, vai
E deixa o corpo cansado aqui
Não desperta nunca mais!
Vive a perenidade desses voos sutis
Não desperta, que tudo aqui são limites!
Voa teus voos sutis
Que não há nada melhor no existir
VIII
Sabes quando despertas
E és como a leveza do éter?
Já tentei descrevê-lo por verso,
Prosa, ensaio e tratado...
Nada!
Talvez haja algo mais, mesmo.
IX
Liberta-me da minha liberdade
Dá-me as tuas mãos faltosas
Desses anos todos
Diz-me qualquer coisa de afeto...
Diz-me que não há pesar no viver
Que as coisas hão de se resolver
Que grandeza maior que o amor não há
Diz-me que o medo há de cessar
As viagens serão constantes
E haverá tempo pra contos e romances
Poemas, cervejas e todo o mais
Volta no tempo e vai buscar-me
Nas tardes amenas da escolinha
E ouve-lhes as palavras das tias
Ah, portou-se como um anjo!
Leva-me de volta para dois mil e um
Praquele delicioso dia azulado
Que, a mim parece, não terminou nunca
E, a mim parece, haverá para todo o mais
Afagava-me os cabelos e fala
Até que nos sonhos, por fim, eu caia
Até que eu não tenha mais
Medo de perder-me
Deixe-me ouvir-lhe o coração
Porque, até onde sei
Pode nem existir
X
A vida é um generoso dia
Meu sol prepara-se para o poente
A noite fria me espera
[Mas, mesmo que pouca,
Ainda lá há vida]
Entre correr, fazer as malas
Martirizar-se, fingir calma e tranquilidade
Entre viver vazio ou morrer de saudades
Eu prefiro ir escrevendo...