Contos -> Terror : 

A Exposição do Horror

 
Santa Cruz de La Palma - Cádiz
19/12/1989


A manifestação da arte é uma das mais interessantes formas de exteriorizar o espírito humano. Só o ser humano cria arte com absoluta consciência disso, e Alice Bess Ecleston sabia como manifestar as suas emoções estéticas na tela com o auxílio de pincel e tinta. Alice, uma sumidade quando o assunto era a técnica e a beleza do desenho e da pintura. Sempre na vanguarda, e ainda que a sua técnica beirasse o realismo, mantinha um pé no surrealismo.
E foi com essa maestria que Alice Bess começou a pintar a sua obra prima. Um quadro em tamanho real de um estranho homem que nunca existiu, a não ser nos sonhos dela. Sim, claro, porque Alice era uma mulher solitária, perdida em seu mundo particular e em sua arte. Traída, maltratada, espancada por todos os antigos amores que um dia pensou ter, tornando-se triste e reclusa dentro de si mesma. Mas jamais abandonou a sua arte. Talvez, e só talvez, o homem retratado em seu quadro seja o príncipe que ela nunca teve, ou um amor um dia cobiçado e jamais conquistado. Mas isso, só ela poderia dizer.
Era uma noite escura e triste a que se avizinhava, portadora de uma horrorosa tempestade - estranhamente um desenho exato de sua alma - aquela em que Alice Ecleston escolheu para finalizar a sua "Maître de guilde", e ser cobiçada por todos os museus do mundo.
As suas pinceladas vigorosas, estranhamente traziam a tona uma figura suave e límpida, que na forma de um homem envergava uma rosa branca em mãos. Um maldito raio, ligeiro e estalado, cortou a tempestade feito uma lâmina cromada, e veio a ter numa árvore perto da casa de Alice. Isso a assustou, e fê-la cortar o dedo na paleta de tintas. Uma finíssima linha de sangue desceu preguiçosa pelo pincel até as cerdas, e lá morreu sem maiores problemas. Que diferença faria? As mãos de Alice estavam coloridas como um arco-íris de primavera, e um tom a mais de vermelho não faria diferença.
Desta maneira continuou a pintar, até que o cansaço a fizesse buscar o doce e merecido leito. Eram 2:45 da manhã de um domingo, e a chuva e o frio também a fizeram recolher-se à cama.
Na sala, mergulhada na penumbra e no cheiro de tintas, ficou a sua maior obra, ainda por acabar. De pé, ao lado da moldura, a figura impressa na tela, altiva e firme, de um cavalheiro em traje escuro e a sua rosa vermelha, quase como um ser humano real. Se eu, naquele dia, tivesse entrado na sala naquele momento, tomaria assustado, o quadro como por ser humano a me esperar de pé, pronto a dizer-me algo.
Mas naquele dia eu não fui lá. Mas não tenho dúvidas do que aconteceu...
Na manhã seguinte, os amigos e a polícia encontraram a casa revirada e destruída. Tudo estava fora do lugar. Marcas de unhas pelas paredes, como se alguém estivesse tentando desesperadamente se agarrar a alguma coisa. Houve luta ali. Uma luta desesperada pela vida, e talvez, por algo mais.
A única coisa de pé, era o quadro em seu cavalete. Um quadro perturbador e surreal. A figura de um homem de pé, segurando pela cintura uma desesperada e pálida Alice, que trazia um terror tão perturbador na face, que me era difícil olhar para aquele quadro sem me congelar da espinha a alma. Eu quase podia ouvi-la gritando... O que Alice quis representar naquela obra? Onde ela está agora? O que aquele homem e a sua rosa vermelha representam?
Nunca mais encontrei a minha amiga... A polícia arquivou o caso. O quadro de Alice jaz hoje no depósito mofado e escuro do museu de Cáceres, em Barcelona. O curador não teve coragem de expô-lo, e eu o entendo. Ninguém consegue contemplá-lo, e deixar o museu com paz no espírito. Quero contar o que aconteceu... De uma certa forma eu sei... Todos sabem... Mas não tem coragem de dizer. A nossa razão não aceitaria.
Hoje, escrevendo isso, uma rosa branca caiu na escrivaninha ao meu lado. Eu olhei... Aqui está de pé, depois da pequena cômoda de canetas, um estranho e familiar vulto vestido em preto, semelhante em tudo ao homem do quadro de Alice. Não irei resistir... Existem forças contra as quais é inútil lutar. Espero que ele não apague o que escrevi, e que aquele que encontrar o que estou escrevendo, incinere o quadro de que falo, e dê paz a alma de Alice.... e a minha!


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London
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