Era na parte de baixo da rua de cima que montavam o estaleiro. De estrutura simples, uma engenhoca simplória.
No aquém da cerca da casa antiga, o barranco cortado de há muito, a jeito de que sua profundidade medisse a estatura de um homem de pé. Os dois toros de madeira bruta, roliça, sustentando varais alinhados, amarrados com cipó. Tudo organizado dentro da técnica do mestre lenhador. Era uma caixa sem fundos, sem tampa, sem laterais, desenhada no imaginário do expectante e suspensa num espaço vazio. Parecia mesmo é com um cadafalso.
Acobertado pela noite de luzes profanas, Zezinho puxou da rabeca, atarraxou as borboletas cavilhadas do instrumento. Depois de conferir-lhe primorosa afinação, despejou a cantoria. No arranjo da tulha a vizinhança se amontoava e se empolgava, tanto quanto mais se encompridava a noite. Em bicas, o suor descia. A dança, em revoluções coordenadas desregrava o aconchego dos corpos entrelaçados de homens e mulheres ávidos e perdidos pelo deleite da melodia. Suas figuras, refletidas pela chama vermelha do fogo, no centro do terreirão, formavam um espetáculo de sombras que se misturavam num vaivém assimétrico, sem ordem. Zezinho era figura reclamada nos pagodes da redondeza. De cara aberta e sorriso miúdo, ligeireza no passo que se media no compasso da música. O repertório agradava e a voz também.
A Rua do Louco Amor tinha fita de lugar de pouca visitação. Era só impressão. Fita mesmo. Engulho de quem tinha receios de frequentar os casebres de lá. É que lá, repousava o lado alegre do lugar; o puro prazer do povoado. A iluminação emergia tremeluzente de tochas improvisadas em pontas de bambu, com pavios embebidos no azeite fino, fabricado da mamona, arbusto abundante na região, espetados estrategicamente pelos cantos do terreiro.
O trio de músicos era incansável e não dava folga. A rabeca dava o tom. Na marcação, o pandeiro incensurável de Assef com suas platinelas douradas e a zabumba de Joaquim Parriba, o anão, repetia no contraponto. Num concerto de atitudes e ritmos bem encaixados, ouvia-se o canto, que se perdia mansamente pelas redondezas:
Um dia passei te vendo
Um mês só te namorando
Dez anos por ti sofrendo oh! cabocla
A vida inteira te amando.
Nos pequenos e breves intervalos corria o porongo, cabacinha ou o coité, servido da melhor cachacinha de alambique – Essa é mesmo coração! – falavam entre sorrisos.
Cachaça é coisa de ciência. Durante a destilação, são coletadas três frações: a cabeça, o coração e a cauda, resultado da temperatura de ebulição aplicada no fabrico. O coração se impunha pelo nome. Órgão nobre do corpo humano, aqui também era referência. O equilíbrio. Extremas eram cabeça e cauda, também chamada de óleo fúsel ou caxixi.
Levindo dormia. O catre, improviso de cama construído de rústicas peças de madeira superpostas, semelhante ao estaleiro, rangia sob o peso daquela enorme carcaça humana. A constituição física de Levindo, o fazia destaque no meio das pessoas comuns. Os pés descalçados, sempre, sem apertos, cascos resistentes e intangíveis. Era um homem quadrado. Formava par com Zezinho. Na rabeca não, na rabeca Zezinho era único num raio de muitas léguas. Levindo não tinha ânimo para as noitadas de pagode. Tinha na voz mansa e compassada, uma tonalidade aveludada que lhe dava uma parecença de apascentador de ovelhas. Não tinha vícios. Carregava naquele corpão a docilidade de uma criança.
Quando sentiu o comprimento do raio de sol na parede, percebeu o dia já alto; mais de cinco horas; o trinca-ferro já ciscava o fundo da gaiola. Esfregou os olhos e conferiu que o café já estava coado. Molhou o rosto, engoliu o fubá suado com avidez e pressa, despediu de Fia e foi pro estaleiro. Zezinho já estava lá, firme, à espera do parceiro. O sol espichava no céu enquanto a criançada encarangadas de frio entrava de carreirinha para as salas de aula do Grupo Escolar bem ali na frente. Saudou o rabequista, e ficaram ambos observando o grande jequitibá-rosa deitado sobre os varões do estaleiro. Que belo espécime!
O ritual da serração obedecia critérios previamente determinados, construídos no empirismo da constância. Um puxador, geralmente pessoa de pequena estatura, postado na parte inferior do estaleiro e o serrador, quase sempre de estatura avantajada, ombros largos de halterofilista, posicionado em equilíbrio sobre a peça de madeira. A um canto, a vasilha d'água oferecia a garantia de umidade do ambiente, saturado do pó de madeira.
Levindo e Zezinho formavam dupla de anos no ofício do estaleiro. Naquela manhã, estavam incumbidos de consumir o grande jequitibá-rosa – a árvore sentinela da perigosa serra dos Ferreira. Quem não se lembra dele? Figura portentosa, copa esparramada sobre o que restou de vasta floresta. Visão privilegiada para quem se aventurava nos sacolejos da pequena jardineira de coloração amarelecida, fazendo o trajeto nunca em hora certeira, mas vinha e ia, preguiçosamente, ora subindo com seu gemido rouco, ora descendo na frouxidão do embalo contido no estrondo dos freios inconfiáveis.
A espécie foi comum na região. Com o passar dos anos apenas ele, agora refém da dupla de serradores, pronto, para dentro de alguns dias ser servido num banco qualquer de carpintaria.
No vaivém dos braços, produzia-se o reboar dos dentes em serrilha da grande lâmina de aço, lembrando em tudo o vaivém do arco da rabeca e o som por ela produzido. O bailado de Levindo projetava-se no descampado do grande quintal. Trazia à lembrança o espectro das sombras da noite da tulha, iluminado pelo raio de sol que lhe traíra na madrugada, ao feitio da chama do fogo que iluminara os trejeitos de Zezinho, e seus parceiros, na cantoria do Louco Amor.
Mais que a lembrança do samba, a sonoridade do ato emergia como um gemido de lamento do grande tronco, se espraiando para a distância dali, como que numa denúncia incompreendida pelos passantes que se acocoravam no barranco e davam palpites. O tracejado na madeira como guias definiam a linearidade do corte e as exéquias do velho jequitibá. O dia se foi dessa maneira. À noite, possivelmente mais uma rodada de samba, rabeca, porongo e cachaça; ia depender da disposição de Zezinho. Levindo descansaria aquele corpão pesado sobre o catre. Acariciaria as intimidades de Fia, com suas mãos intumescidas do cabo da grande lâmina, provocando-lhe arrepios de prazer.
O jequitibá, com as entranhas reviradas seguiria pra um canto de sala ou um escritório qualquer, talvez um salão de liturgias. No estaleiro, a lembrança de risos, assobios e a borra de farelo da madeira embolorada e perdida no colo do chão. A Serra dos Ferreira, que já não sentia mais o clangor dos freios da jardineirinha amarelecida, não tinha mais sentinela. Uma lacuna invisível, que os olhos dos homens não conseguiam perceber, diminuía o espectro da natureza rala do lugar. A serra ainda está lá, corrompida; poucos os que sentiram a ausência do jequitibá-rosa. Poucos. Longe dali, eviscerada, consumida, a sentinela da serra guardava para sempre a marca dos dentes afiados da serra de aço dos dois serradores.
Leia de Wagner M. Martins
FALA, FILHO DA MÃE!!! - Capa Paulo Vieira
UM BICHINHO À TOA. - Capa: Camilinho
Participação:
Livro OLHA PROCÊ VÊ! de Elias Rodrigues de Oliveira
No prelo:
UM INTRUSO NO QUINTAL
Narração: MANDRUVACHÁ - Entre Folhas