Naqueles dias de outono, as árvores semeavam gentilmente as suas folhas secas, de cores férreas, nos pés soturnos da grande torre de vigia, que delimitava a pequena vila. Era o grande orgulho daquela cidade de camponeses, e como beirava um grande precipício a beira do mar, também já havia sido um importante farol, e outrora, uma construção destinada a execução de bruxas e congêneres da mesma extirpe, sem fazer disso uma redundância.
O governador da pequena vila, vinte anos antes, havia mandado colocar um imponente, belo, e reluzente relógio no alto da torre. Era o capitalismo chegando, juntamente com as fábricas, para escravizar de vez os moradores da pequena cidade, domando-lhes o tempo. Agora, tinham hora de acordar, comer, dormir, ir ao banheiro e outras coisas congêneres, sendo agora, redundante.
Pois bem. Nos últimos sete anos, o relógio permaneceu estragado. Parou exatamente às 3 horas da tarde, numa sexta-feira de agosto, e não houve cristão, e nem pagão, que fizessem o relógio voltar a funcionar. E não havia mecânico nos últimos mil quilômetros, que pudessem dar um jeito em tão intrincado mecanismo.
Buscaram Léo Oto, o melhor relojoeiro do país. Quiçá, do mundo! Andava sempre com as suas complicadas ferramentas ao lado do corpo, como se estivesse armado, seu sinistro óculos de aro fino, como se se orgulhasse deles, e o seu ar de superioridade, que congelaria um fidalgo da corte de Luiz XIV, o tal rei sol, ou Luizinho, para os íntimos.
Léo encarou a velha torre contra o sol, como se ela fosse um gigante a ser vencido, e ele, Don Quixote, o da Mancha, no seu mais alto delírio cavalheiresco. Empunhou a sua chave de fenda suíça, como se desembainhasse a própria Excalibur, e galgou os cento e quarenta e quatro degraus que levavam até o relógio no alto do campanário.
Lá em cima, encontrou toda a parafernália mecânica que dava vida ao relógio. Mexeu, remexeu, fuçou, escarafunchou; e nada! Jogou óleo nas juntas. Nada. Trocou engrenagens; Niente. Trocou a mola, nothing. Bateu com um pedaço de pau, nichts! Moirão de cerca, pia da cozinha, granada... Nada fazia o relógio voltar a funcionar!
Ferido então, que estava em seu orgulho, vendeu a sua alma ao capeta. Por que o espanto? Fazemos isso o tempo todo... Lembrem-se: " Não se pode servir a Deus e a Mamon". Sendo dessa forma, "aquilo" chegou, atendendo ao seu apelo.
-Pontual como sempre - disse o espírito da escuridão.
Léo olhou em seu relógio de bolso, eram exatamente 14 horas e 59 minutos.
-Estive esperando por você, por todo esse tempo. Antes do oceano lá embaixo existir - disse outra vez a sombra.
Foi então que Léo entendeu, que o relógio da torre marcava 3 horas, o que forma, na verdade, com os ponteiros, a letra L, de seu nome. O três, é a letra E, invertida. E o 12, a zero hora do mundo. Ou também, a letra O.
Como num soluço, e de repente, o relógio bateu as três horas da tarde, e voltou a funcionar!
A alma de Léo Oto se despedaçou, e em mil partes, vaga pela sala do relógio, e de lá não poderá mais sair. Ele aparece, às vezes, como um rosto assustado, desenhado na janela, depois que o sereno assenta no vidro. Ou como uma mão esquelética, que arranha as costas das pessoas que se aventuram por lá.
Dez anos depois, o relógio parou novamente. Era 26 de abril, e marcava 16 horas e 23 minutos...
j