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"AQUELA VIAGEM"

 
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Quando cheguei estava frio.
Um frio que eu nunca tinha sentido antes.
Que penetrava na roupa, nos ossos, na alma.
Na minha alma inocente de 7 / 8 anos.
Um táxi estava à espera, e dele saiu um senhor idoso, ao qual a minha mãe se abraçou a chorar convulsivamente , ali mesmo, diante de toda a gente !
Os dois choraram, abraçados um ao outro.
Eu sentia que não pertencia àquele quadro, não o compreendia.
Depois de devidamente abraçada e beijada pelo senhor idoso, entrámos no táxi, e por sua vez , o táxi entrou num novo Universo, para mim !
Uma terra estranha, cheia de montanhas, rochas, árvores e muito, muito frio !
Conforme penetrávamos naquela “floresta” , o meu rosto e mãos colaram-se à janela de trás do táxi , e conforme avançávamos naquela terra, cheia de floresta , frio e abismos, eu senti pavor !
Senti que estava a ser levada cativa para um sítio escuro , solitário e triste…que estava a ser tragada para as suas entranhas sem ter poder para fazer o caminho de volta !
Estava a ficar cada vez mais longe do sol, do deserto, da areia , do riso, da liberdade e dos sonhos que eram a minha realidade.
Longe da minha terra , algures em Angola .
Agora, em vez de luz, tinha sombras, em vez do calor, tinha frio, em vez de um horizonte sem fim, tinha uma prisão sem fim, no meio de todas aquelas árvores!
Em vez de planícies para correr , tinha montanhas altas e ribanceiras, que eu podia ver da janela do táxi, onde não se podia andar de olhos fechados, quanto mais correr !
Em vez da liberdade que tinha e não sabia, tinha agora ordens que tinha que saber!
Em vez de sonhos que me transportavam para onde eu quisesse, tinha a realidade que transportava para onde eu não queria !
E dentro daquele táxi, conforme percorria aquela estrada cheia de curvas, de ribanceiras, de sombras e de frio, tive angústia e medo.
E chorei , sem ninguém reparar que eu chorava um choro diferente.
Chorava, porque algo dentro de mim me confirmava, como um machado sobre o meu pescoço, com uma certeza que eu nunca tinha sentido antes, numa idade em que não é suposto ter certezas assim, que minha querida infância tinha acabado !
Tinha passado por uma guerra, por noites em que me deitava com meus pais na mesma cama, todos vestidos e calçados, atravessando acordados noites a fio, com o meu pai de arma ao alcance, tiros na noite, noites de vigilância e sussurros, gente de gestos e olhos apavorados, mas foi ali , ali , naquele lugar frio e escuro para onde me levavam, que algo tocou a minha alma, até aí simplesmente curiosa e sem temores , e pela primeira vez senti as dores de um adulto !
Tantos anos volvidos sobre esta viagem , e ainda ( e sempre) a recordo com precisa nitidez, em todos os seus contornos, do meu doloroso acordar para a vida !
Foi naquele dia, naquele táxi, naquela estrada (que haveria de percorrer centenas de vezes nos anos seguintes) , com aquele estranho homem idoso ( o meu avô materno, um homem bom e digno ) !

Mais tarde iria ouvir muitas vezes (sussurrada) a palavra “retornado” !

( In “ Crónicas de Corpo e Alma” , por Ana C. )


Esquece todos os poemas que fizeste. Que cada poema seja o número um.
*Mário Quintana*

 
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SOB_VERSIVA
 
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