INESQUECÍVEL EPISÓDIO
-CRÔNICA-
Fazendo uma analogia com o desporto estudantil de há 40 anos passados com o tempo de hoje, percebe-se uma grande diferença. Naquela época havia entusiasmo, os estabelecimentos estudantis disputavam as competições com garra, fibra, com amor à camisa, isso em todas as modalidades. Hoje tais acontecimentos são corriqueiros, não se tem a mesma alma, o mesmo sangue, infelizmente.
Fui importante personagem do episódio que narro nesta crônica. Eu era aluno do Colégio GP, o GP era tricampeão na modalidade de futebol de salão infanto-juvenil. As escolas tradicionais da cidade sonhavam em dissipar nosso orgulho, onde havia estudantes que praticavam e gos-
tavam do referido esporte o comentário era único:
- Temos que barrar as pretensões do GP ser tetracampeão, este ano o título será nosso!
E se preparavam com bastante antecedência, participavam de inúmeros jogos amistosos e torneios com objetivo de entrosar seus times e, assim, acabar de uma vez por todas com a façanha de títulos do nosso educandário, por sinal, escola pública. Na atualidade nota-se que os
campeonatos são distintos: escola pública só participa de competições com outras públicas, os estabelecimentos privados têm seus próprios organogramas, mas naquela época, eram todos juntos, num só campeonato.
A cidade fervia. Enquanto os demais se preparavam com meses de antecedência, nosso esquadrão se juntava para os treinamentos específicos visando os jogos apenas 30 dias antes. Fora desse tempo, apenas jogávamos entre nós em torneios inter-classes, hoje chamados nas escolas de Olímpiadas Estudantis. E, dentro da escola, ficávamos todos alvoroçados, esperando pela convocação feita por Fuinha, nosso professor de Educação Física e Técnico. Foi com alegria que vi meu nome selecionado para atuar como ala direita, minha posição. Logo iniciamos os treinamentos. Fuinha, apelido de Luís Carlos Barbosa, era excelente treinador, exímio conhecedor do esporte e era tricampeão com o GP. Teve grandes oportunidades de trabalhar em grandes clubes da capital, como o Náutico, por exemplo, porém era boêmio demais, gostava descaradamente de uma cervejinha e isso foi o ponto negativo em sua carreira. Morreu ainda jovem, vitimado por cirrose hepática, uma pena...
Finalmente chegou o dia da grande estreia. Pegamos uma chave muito forte, com somente escolas privadas. Eram quatro em cada grupo, classificando-se duas para os jogos finais. Eram partidas de ida e volta. Nosso primeiro embate foi na quadra do adversário. O jogo foi bastante apertado, vencemos por 1 X 0, com gol do nosso pivô, Wellington. Era notório o clima desfavorável que enfrentávamos, onde chegássemos para atuar éramos recebidos com xingamentos e, dentro da quadra, éramos alvo de batatas, cascas de laranjas, etc... Segundo jogo em casa, batemos nosso adversário por 3 X 1, fiz dois gols neste jogo, contudo algo desagradável me ocorreu: recebi forte pancada no joelho e, praticamente, estava fora dos demais, dificilmente voltaria a atuar neste ano. Chorei muito e fui muito consolado pelos colegas. Fuinha lamentou bastante minha perda...
- Puxa, Ivan, você é titular absoluto em meu time... vai fazer muita falta...
Abracei-me a ele e respondi:
- Não há de ser nada. Paulo é ótimo ala e dará conta do recado.
Realmente, modéstia à parte, fiz verdadeiramente muita falta ao time, no entanto o time colocou o coração na ponta do tênis e as vitórias foram surgindo: terceiro jogo fora, conseguimos expressiva vitória por 3 X 2 sobre o vice-campeão do ano anterior. Éramos líderes, três vitórias
e os palpites absolutos em apontar-nos, antecipadamente, como tetracampeões. Jogos do returno e mais três vitórias consecutivas, todas apertadíssimas: 4X 3, 7 X 5 e 2 X 1. Finalizamos esta primeira fase como cabeças de chave e, agora, num só turno, sem jogos de volta, o quadrangular final. Eu permanecia machucado e sem qualquer chance de voltar ao time. Tornei-me torcedor, embora durante os jogos eu me vestisse a caráter a fim de completar o banco.
Início do quadrangular final. Jogo muito difícil, um 0 X 0 que insistiu em permanecer até os 2 minutos finais, quando nosso pivô, Wellington, numa mirabolante jogada fez 1 X 0 e, assim, deu cifras ao marcador da partida. Jogo seguinte: quadra neutra, havia chovido muito e nosso
espaço estava sem condições de jogo. Este jogo realizou-se na Quadra do Náutico e vencemos por 2 X 0, com dois gols de Wellington, entretanto este mesmo Wellington quebrou a mão ao final do jogo, faltando 1 minuto numa jogada violenta do adversário. Resultado: estava fora
da partida final, bem como nosso goleiro, igualmente machucado. Iríamos enfrentar na final um esquadrão que também vinha de duas vitórias consecutivas, havia se classificado na outra chave igualmente em primeiro lugar e com 6 vitórias. O jogo prometia. Era um duelo de gigan-
tes, todavia nosso time estava sem três titulares absolutos: eu, o goleiro e o melhor atleta e artilheiro do campeonato: Wellington. Os palpites começaram a mudar, já não éramos encarados como possíveis donos do título e, para complicar ainda mais as coisas, o sorteio apontou a
quadra do adversário para o jogo final. Tudo e todos contra nós. Até o regulamento orava contras as nossas pretensões: como o adversário possuía melhor saldo de gols, jogaria pelo empate para sagrar-se campeão. Só um milagre nos daria o tetracampeonato. Só um milagre...
Chegou o dia da tão sonhada final. Nosso time estava alquebrado, mesmo assim muito confiante. Nosso único receio era o goleiro reserva, Rosalvo, absolutamente não acreditávamos em suas qualidades, “engolia” gols fáceis... esse era nosso único temor. Nos vestiários, minu-
tos antes de começar o embate, percebi a preocupação de Fuinha. Ele caminhava pra lá e pra cá, suava, estava visivelmente nervoso. Fez sua preleção, as palavras saíam “machucadas”...
Eu, que tudo observava, enchi-me de coragem e lhe disse:
- Professor, quero jogar, não posso ficar de fora de uma partida dessa. Por favor, coloque-me em quadra...
- Está doido, Ivan? Você tem uma lesão grave no joelho, não tenho permissão do médico da escola para acionar você. Esquece, não insista... Além do mais, não tem treinado, está fora de rtimo e de forma...
De repente tive uma ideia. Lancei-a. Era tudo ou nada...
- Que me desculpe, Rosalvo, ele sabe que não confiamos nele para um jogo dessa envergadura, então, Fuinha, proponho-me a jogar de goleiro. Pense rápido, temos poucos minutos...
Fuinha deu vários passos à direita, outros vários à esquerda e tomou a decisão:
- Tudo bem, Ivan, você entra de goleiro e que seja o que Deus quiser...
Entrei como goleiro. Justiça se faça: peguei muita bola, parecia o goleiro titular. Mas nosso beque parado, faltando cinco minutos para o término do primeiro tempo, faz perigosa falta fora da área, mas o juiz, provavelmente mal intencionado, viu a infração dentro da área, somente ele, e marcou pênalti. A cobrança foi feita e eles fizeram 1 X 0. A quadra estava superlotada, houve grande comemoração por parte do time adversário. Começaram os xingamentos, cascas de laranja, batatas inglesas sobre nós. Na verdade, estávamos bastante nervosos. Teríamos que virar o jogo e o empate favorecia o time contrário. Final do primeiro tempo. Nos vestiários recebemos aconselhamentos de moral, era necessário que levantássemos a cabeça, estávamos bem no jogo. Calma, muita calma, pedia Fuinha.
- Vocês são gigantes. Não se apavorem com torcida, nem com o time deles. Vocês estão bem e todos viram que a bola do gol não foi pênalti. Foi arranjado. Confio em vocês.
Fizemos uma prece conjunta e novas forças tomaram conta do time. Eles, confiantes de que já tinham o título nas mãos, diminuíram a pressão e começamos a tocar a bola, aguardando uma possível brecha para empatar. Esta brecha só veio ocorrer aos 13 minutos, quando Maurício, o
substituto de Wellington, fez linda jogada e prensou a bola com o adversário perto da área deles e o juiz, mal colocado viu também a infração dentro da área e marcou pênalti a nosso favor.
Dos males o menor, o árbitro havia falhado no primeiro tempo contra nós, agora era nossa vez de aproveitar sua errônea marcação. O próprio Maurício cobrou e empatou: 1 X 1.
O empate favorecia o adversário. Colocaram duas bolas em meu travessão e nós uma vez no travessão deles, porém 1 X 1 dava o título a eles. Comecei a me desesperar... Olhei rapidamente para o técnico deles que, neste momento, dirigiu-se à mesa arbitral para saber do tempo de jogo. Ouvi bem quando o mesário, quase sussurrando, respondeu: 20 segundos!
Nosso beque parado recupera a bola e me faz um recuo. Dominei a pelota com os pés e uma Ideia meio maluca passou pela minha cabeça. Neste instante me esqueci que curtia um machucão no joelho e saí desesperado com a bola nos pés a driblar um, dois, três, quatro e fiquei
de frente ao goleiro deles. Era goleiro contra goleiro e meu colega do time adversário deu um passo em falso, suficiente para que fosse driblado por mim... fiquei sozinho: eu a barra. Calmamente mandei o balão para dentro das redes: 2 X 1 ! Foi o gol do título! Mal eles deram a
saída, o apito do mesário: estava encerrada a partida e nós nos sagramos tetracampeões dentro casa do adversário. Desta vez nos respeitaram. Não nos jogaram mais nada, nem nos xingaram, ao contrário, o público de pé aplaudiu nossa garra, nossa fibra, nossa vitória.
Tudo aconteceu há exatamente 47 anos, em 1968. Este fato ficou gravado em minha mente e faz parte de minhas mais gratificantes reminiscências.
No ano seguinte fui estudar à noite em outro estabelecimento de ensino, desta vez numa escola privada, pois neste mesmo ano perdera meu pai e eu precisava trabalhar durante o dia para ajudar nas despesas de casa. Não deu para continuar jogando, faltava tempo para dedicar-me aos treinamentos e fiquei, a partir de então, apenas jogando minhas “peladinhas” como qualquer garoto que gosta de futebol.
FIM
De Ivan de Oliveira Melo