"...o trabalho de um homem não é mais que esta
lenta travessia para redescobrir, pelos desvios da arte,
aquelas duas ou três imagens magníficas e simples diante
das quais seu coração primeiro se abriu."
Albert Camus
Se me maravilham palavras novas,
é que de muito antes as conheci
é que me queima o coração e faz fuligem das artérias
é porque perco a mim mesmo toda tarde
e conheço todas as letras do que me salvaria a alma
Mas não sei como percorrer o caminho
A sinuosa estrada da cidade fantasma
As mãos que me banham numa antiga lagoa purpúrea
Eu me deixo perder à noite,
Mas dou de frente com o reencontro eventual
Quando me surge à vista um ou outro mágico personagem secular
Quando entrego as mãos às cegas e penso em deixar-me conduzir
E desta vez muito me aquece o pensamento
De que finalmente tenha alcançado a magnânima virtual solidez
De que me perdi todos esses anos só para que se tornasse mais belo,
o momento em que fosse, por fim, encontrado
Os movimentos das tuas palavras a mim acalentam
O vento que sopra aos raros cabelos de um enviado ancião
Anjos e demônios batalhando ao céu aberto,
incessantes sobre dias e noites
Argúcia de um espírito que já conhece o seu alimento
Lamentarei e chorarei baixinho pelos anos que, sozinho,
me perdi por entre as altas relvas selvagens da solidão?
Ou aceitarei as asas que me ofereces para que eu, estonteado
Alcance e cruze os derradeiros céus?
Só se teme a morte quando não se tem a sorte
De deixar-se dormir encolhido e absorvido
Pétalas duma doce brisa que extermina o cansaço
Deixar-se viver fora do que aqui nos encarcera
Através daqueles primos e tios e amigos todos
Eles rodearão tua cama de moribundo
Mas que tentes não se deixar partir legando lágrimas
Que viverás ainda em cada pequena parte do mistério
que é este vasto mundo [tão pequeno]
Eu sentei-me à tarde e quase me deixei perder
A observar a imagem ensolarada de tudo o que sempre quis
O deleite da simples possibilidade do impossível
Meus anos de menino imberbe e esquecido
Meu espírito como uma seta que à imagem aponta
Minha garganta - conveniente fortaleza contra meu vagido
Flutuando e observando do alto da fantasiosa balaustrada
Querendo, ainda, viver; Viver!
Viver, sim, para encontrar todos aqueles rostos
E rostos novos e frescos todos os dias
Os sobreviventes deste mundo, desviando das balas perdidas
Da falta de amor, dos carros enlouquecidos das avenidas
Banhando-nos das lágrimas dos bebês esquecidos nos bancos de trás
Das lágrimas antigas duma história dolorosa que aqui deságua
De lágrimas quaisquer que da dor universal se extrai
Viver, ainda!
E ainda errar todos os dias [até que se acerte]
E cair todos os dias [até que chegue o dia de erguer-se]
E desejar impossibilidades, afogar-se em ansiedade
Até que se descubram os mistérios do Fantasma
Se o Universo é mesmo infinito para as quatro direções
Continuarei a percorrê-lo até que não tenha mais pés
com que andar.