COISAS DE CARNAVAL
-conto-
Silvano Moisés, 36 anos, eletricista autônomo. Desde os 5 anos idade que brinca carnaval. Começou nos bailes infantis e, com o passar do tempo, foi aprendendo a gostar mais e mais da folia de Momo. Estava muito perto de chegar aos 37 e, neste ano, estava difícil, a saúde o cambaleou e ele estava interno num hospital. Diagnóstico: câncer de pulmão.
Todos os dias olhava para a folhinha que havia na parede perto de sua cama: apenas uma semana o separava dos festejos que mais amava. Infelizmente estava desenganado pelos médicos, seu estado era terminal.
Um dia, pela manhã, puxou conversa com a enfermeira que levava sua refeição matinal.
- Lourdes, seu nome, não é?
- Sim, Seu Silvano, meu nome é Lourdes. Quer me dizer alguma coisa?
- Quero lavrar por escrito meus últimos desejos. Sei que estou pertíssimo da morte, meu corpo já não obedece aos meus comandos e, como estamos às vésperas do Carnaval, desejo expor minhas vontades enquanto estou consciente.
- O que pretende? Diga-me, escrevo aqui neste bloco e deixo aqui na mesinha para que todos possam ler e tomar conhecimento. – Pediu Lourdes.
- Caso eu ainda esteja respirando pelos dias de carnaval, quero que uma ambulância me leve até o centro da cidade onde ocorrem as
manifestações carnavalescas. Que se abram as portas do veículo e eu possa curtir meus últimos momentos de vida saboreando o que
amo: o Carnaval em toda a sua plenitude. – Expôs o paciente.
- Não sei se será possível, Seu Silvano – disse Lourdes – provavelmente seu médico não concordará com isso, nem tão pouco o hospital.
- Não me interessa, senhora Lourdes – esbravejava colérico, o doente – todos têm obrigação de atender aos meus derradeiros desejos nesta vida.
- Acho pouco provável que atendam – explicava Lourdes, com paciência – além do mais sua esposa e seus outros familiares também não haverão de aceitar tal desejo, seu estado de saúde não permite. De qualquer maneira, está anotado aqui, todos haverão de ler.
Lourdes abandonou o recinto. Silvano ficara só, remoendo suas ideias.
Os dias foram se passando. Chegou o tão esperado período de alegrias. Silvano Moisés prosseguia na mesma: não piorara, tampouco melhorara, sua situação clínica era a mesma. Claro, seus últimos desejos foram categoricamente negados por todos, não havia cabimento ao
que sonhava. Porém ele não desistira, sua mente trabalhava a todo vapor: ele haveria de não perder a festa. Imaginou uma porção de situações e se apegou a uma delas.
Foi no sábado de Carnaval. Famoso bloco carnavalesco abria as festividades da cidade e era considerado o maior do mundo, isso devido ao número de foliões que o seguia pelas famosas ruas, já conhecidas do público ao longo dos anos. Silvano esperou que a enfermeira saísse do quarto para colocar em prática o que planejara. Durante a madrugada conseguira levantar-se e buscou em suas roupas o dinheiro que ali pudesse existir. Até que havia uma boa quantia. Pronto. Tudo mais fácil do que poderia imaginar. Ainda não havia chegado qualquer pessoa de sua família e foi neste ínterim que abandonou calmamente os aposentos e desceu as escadas sem ser interceptado. O caminho estava livre. Chegara à rua sem ser visto e logo entrou num táxi. O motorista até que estranhou:
- O senhor é paciente do hospital?
- Nada, moço, claro que não, esta é minha fantasia. Vamos sem perda de tempo, não posso perder um só instante o desfile do meu bloco favorito. – Disse Silvano.
E o motorista, inocente, acreditou. Levou-o até o centro, o frevo era a alegria da multidão.
Apesar das fortes dores que sentia, a respiração bastante ofegante, Silvano Moisés pagou a corrida e desceu do veículo. Catou o dinheiro que trazia e comprou uma latinha de cerveja.
“Este é meu último Carnaval, então me libero de tudo, inclusive do álcool, aproveitarei até o fim e que Deus seja louvado...” – Pensou.
Não se sabe como, todavia Silvano conseguiu se distrair e se meteu no meio do povo. O que faz a força de vontade! O que não proporciona o amor às coisas da vida! Horas e horas permaneceu cantando, dançando, frevando... até esqueceu que estava profundamente enfermo
e em horas e mais horas saciou sua sede, seus mais sublimes anseios em relação à época em que vivia.
Lógico... O sol estava escaldante, o calor insuportável e houve um instante que Silvano sentiu tonturas, caiu, levantou-se e foi se amparando num e noutro até que sucumbiu definitivamente, totalmente embriagado. O bloco seguiu seu destino e Silvano ficou estendido numa
esquina, isolado e esquecido...
No hospital foi dado o alerta. O paciente do apartamento Y havia desaparecido. Procurou-se por Silvano em todas as dependências. Nem sinal do paciente. Foi quando, Clotilde, a esposa de Silvano, matou a “charada”.
- Gente, eu não quero crer no que estou imaginando, porém acho que é exatamente o que está acontecendo... Meu Deus, será possível?
- Em que a senhora está pensando? – Quis saber a chefe do setor de enfermagem.
- Hoje é sábado de carnaval...Meu marido é alucinado pelos festejos de Momo... Hoje dia do desfile do seu bloco predileto. É isso, Silvano fugiu, foi para o desfile... Santo Deus! - Frisou Clotilde.
- Impossível, senhora! Seu marido não havia em si condições de sair andando daqui – Falou a enfermeira.
- Pois eu tenho certeza! Vamos, senhora, arranje-me uma ambulância, vamos resgatá-lo antes que seja tarde demais...
E lá se foram Clotilde, a chefe do setor de enfermagem do hospital e um médico à cata de Silvano. Percorreram as várias ruas da cidade, meteram-se no meio do povo e... nada do doente! As horas corriam céleres... Já estavam quase desistindo quando Clotilde viu um homem
caído numa esquina com uma latinha de cerveja às mãos.
- Vejam, é ele! Eu não disse! – Deus seja louvado!
Silvano Moisés foi trazido de retorno ao hospital. Seu estado de saúde agravou-se. Estava inconsciente e de imediato deu entrada na Unidade de Terapia Intensiva. Estava em coma!
Todos confabulavam, analisavam como pôde ele sair sem ser visto e que força misteriosa o fez levá-lo até onde o encontraram...
- É preciso ter muito amor ao Carnaval para fazer o que este homem fez – Dizia Lourdes, a enfermeira.
- Nestas horas, inexplicavelmente, o corpo ganha força, novas energias, embora momen-tâneas – Tentava explicar o médico de plantão – o amor fala mais alto!
Três dias Silvano ficou na UTI. Ao final do terceiro dia, confirmava-se sua morte.
No dia seguinte, à tarde, era intenso o movimento no velório. O sepultamento estava marcado para ocorrer às 17 horas. Esposa, irmãos, mãe, pai, primos, tias, tios, amigos mais chegados velavam o corpo coberto de flores no caixão que estava para ser fechado. Era a hora da despedida. Eis que quando algumas mãos se puseram a fechar o ataúde, repentinamente Silvano desperta, senta-se em meio ao caixão e, com um olhar de assombro, interpela:
- Quem morreu aqui?
Silvano não falecera, tivera um ataque de catalepsia não identificado pelos médicos. E o mais espantoso de tudo, Silvano Moisés estava plenamente curado da doença que o acometera. Perante a surpresa de todos, perguntou:
- O Carnaval já acabou?
FIM
De Ivan de Oliveira Melo