E então, é certo, habito eu e pertenço, à Évora Branca de Cecília Meireles. Essa Évora, * “marmória, ebúrnea, de lírios, nuvens, pombos e cisnes, camélia, cal, amêndoa e lua, imaculada ...” Essa Évora de esposas, vestais, capitéis, tumulos, cipós – paisagem de um mundo lunar (…), por onde os passantes sentem a tristeza da sua densidade, do seu peso, da sua obscura sombra.”
Pertenço a “Essa menina e moça” muralhada de saudade, pejada de cáusticos instantes, essa dama, revestida a languidez, pulcramente imposta ao Alentejo, varrendo searas e campos de solidão. Onde Mouros, Romanos e Cristãos ergueram esperanças, lançaram estepes, criaram mitos …
* “Amo a sobriedade gráfica das suas muralhas que caminham para longe como o dorso eriçado de um animal ante-diluviano, e as torres quadradas, e os parapeitos sobre os arcos, e o vulto maciço dos palácios, e todo o século XVIII das varandas e janelas, e tudo o que é muito antigo – claustros, aqueduto – e tem uma grandeza, uma dignidade que o cimento armado – a meus olhos – não consegue ter.”
Ir por Évora é ir pela Vida. Cantos e recantos, vielas de saudade, segredos e instantes - enterrados, rasgados, sepultados - em longas e eternas pedrarias. É o destino de um povo! De uma Pátria! É o escutar de Florbela Espanca que, repousa sinuosa em longo verde, esculpida em pedra fria, de olhos postos no além, no “aquém e além dor ...” * “como se o escultor tivesse querido imortaliza-la. E há um silêncio de cetim, franzido apenas de repente pelo frenesim dos pombos, pelo frémito da água esverdeada. E o rosto de Florbela pousa ali a sua brancura já sobre-humana, “como poisam as folhas sobre os galhos”. E tudo é branco. Évora Branca, marmórea, ebúrnea, cera, alabastro, magnólia, jaspe … Sal das tristezas, coluna de horas ultrapassadas...”
E vejo o templo, a Sé, em longas margens de sossego, na serenidade dos heróis, na tristeza das fachadas, na dolencia dos jardins, na quietude dos olhares, na plenitude das gentes, que, pela vida, agora, tantos anos volvidos, ainda vão passando … serenas, imutáveis, imberbes!
* “Ai quem tivesse estes leves pés que parecem de ar e luz, e são vetusta pedra! Ah quem fosse apenas o que fica esculpido, ténue e translucido … Évora Branca … - (…) o verde macio do jardim, com seus lagos, cornijas, seus recantos pensativos, onde os pombos alçam voo, num arremesso de leques brancos, os cisnes deslizam sobre o seu próprio reflexo, e, à meia luz de um pequeno bosque, é onde a face de Florbela inclina a sua palidez de magnólia.”
E a tela está pintada! Évora Romântica desenhada, esculpida, serena, estável, no dorso do Alentejo, cáustico, incólume, parado … Só eu não estou, inteiro, eterno, em paz! E chego à praça! Amplia-se o encanto da cidade. E é maior o meu tormento! A fachada de Santo Antão, seráfica, imponente, as arcadas, longas, rebuscadas, sem fim, a fonte, redonda, coroada, no esbater das pobres águas, tristes, penosas, em queda, de 8 bicas de carmesim, sem tempo nem era. E assento-me na esplanada de Santo Humberto. Estou cansado … de mim … contemplo o entardecer, recebo a noite. E nascem versos - como água sai da fonte ou História - da cidade!
Eu, Évora e a solidão …
É noite … Évora faz silêncio.
Caminho-a na penumbra,
meio triste, meio esquecido …
Sozinho, em direcção, não sei de quê – vou!
E vou em vão! Ou não! Talvez vá, bem sei …
Mas indo irei eu a parte alguma?!
Não sei! A parte incerta irei, por certo!
Mas irei … irei … Que os meus cansaços
não me turvam, nem me toldam,
nem dominam! Irei! Irei!
Caminhando pela umbra … vou além …
onde não cheguei ou alguém foi.
A avenida, o Hospital, carros a passar,
um caminho sinuoso por passeio,
árvores sem copa, folhas, tantas folhas -
secas - pelo chão … que piso!
Triste quadro. Minha vida. Pobre vida.
Eu, tão grande, “doente”, a pé, só,
por caminhos, tristes, sem tectos,
caminhando sobre folhas, secas,
esperanças fugidias … sou eu! Sou eu!
Um ser obsoleto! Alguém que sobra!
E é noite, cerrada – madrugada, infeliz.
Só eu e nada, Évora e a minha solidão.
Eu, meu coração, Évora e este “chão”...
E piso a noite, passo,
num passar que pisa a solidão.
E piso a vida, vou,
num ir que parece ser em vão!
Mas vou … E nunca, nunca aprendi a existir!
Esta dor de fora fáz-me exacto por dentro! Só ela!
E isso que vos importa?! Nada! Digam-no!
Das mãos de Deus o aceito, de vós o aceitarei,
sem reservas ou lamentos,
que tudo tem seu jeito! Terá?!
Quem sabe?! Tenho que ir …
se o quero saber, terei que ir …
deixando p'lo caminho os “corpos” de toda gente.
E dói-me o meu destino …
Não posso esperar por ninguém!
Pois não posso estar morto quando a morte vier!
Quero que ela mate em mim um vivo!
Por isso, vou, e deixo os “mortos” no caminho.
Os meus mortos!
Que estando vivos, são mortos! Mortos!
Meu caminho é por mim, é em mim,
por mim fora, de mim a mim …
E quem quererá ouvir ou entender
este espírito de coragem?!
Quem?! Onde?! … Se eu próprio o não entendo!
Se eu mesmo o não desvendo e desprezo!
E vou … indo … em frente …
Sequer olho para traz, que a saudade,
rói meu pensamento,
transformando coragem de ir, só,
em medo, ausência e lamento!
Não serei a estátua de sal das escrituras …
E não olho … não olho … e vou … e irei … sempre …
Em frente! Só! Em frente!
E então, alevantei-me, ergui-me da minha solidão, e eis que, um eborense, flácido e amargo me surge de fronte. “Ainda aqui?! Bela vida!” E eu, absorto e recolhido, fixei-o, sorri e fui … porque palavras doces, gestos ternos, apenas nascem de um olhar silencioso. Já longe, olhei ainda, e ali o vi, parado, coberto de espanto. E eu, lá fui, de regresso a outra parte, essa a que o senso comum chama, na sua triste e nefasta hipocrisia – casa! Aí onde não me sou nem encontro! Mas vou! Irei! Sempre! Como sempre fui! Só! Em frente!
E é assim que passo, num dolente mas poético passar, por esta Évora Branca, Romântica, pejada de saudades e nardos, de Cecília Meireles e Ricardo ...
Em Deus
Ricardo Maria Louro
(Na Praça do Geraldo em Évora)
* Excertos do Texto, “Évora Branca” da Poeta Brazileira, Cecilia Meireles.
Ricardo Maria Louro