Querida,
Não faz muito tempo, o hospital recebeu um novo paciente; uma figura incomum. Alto, muito pálido, moço, mas com essa mocidade de quem já viveu bastante. Usava um gorro preto que nunca tirava da cabeça. Vestia-se, também, sempre de preto.
Pouquíssimo tempo após sua internação fez-me seu amigo, assim, passei a conhecê-lo mais intimamente.
Disse-me ao se apresentar, em um portitálio, que era o diabo em carne e osso. Como aqui, conforme você já verificou, tem desde o Filho de Deus até o líder nazista Hitler; é claro que não o levei a sério; embora, ele tenha criado um clima diferente, pois não tínhamos nenhum diabo.
Perguntei-lhe por que, ele sendo o diabo, tinha se internado em um hospital de malucos. Confessou-me que estava um tanto depressivo, porque estava perdendo o interesse pelos seres humanos; pois, os comprava por pouco, e valiam cada vez menos. O trabalho de tentar os seres humanos ao pecado tornara-se desnecessário; os homens pecavam por si mesmos, natural e espontaneamente, sem a necessidade de convites. E isso o estava tornando um inútil.
Apesar de toda a sua maluquice, sua conversa era das mais agradáveis, comparada as que costumava ouvir antes da internação do diabo. Também, não posso negar que ele tem ótimo conhecimento da sordidez humana.
Certa ocasião contou-me que tinha perdoado “aquele que o condenou e o expulsou, porque não tinha muitas razões de queixa. Lá no seio celeste, ele se deprimiria muito mais. Após deter-se, alguns instantes, como dominado por algum pensamento (notei uma profunda ruga ao centro das sobrancelhas), disse-me que no lugar do Criador, teria condenado os rebeldes a uma pena muito mais terrível.
Em outra ocasião, encontrei-o na sala de recreação lendo um livro de capa negra e rindo consigo mesmo. Mal me viu, fechou o livro e foi explicando que conhecia há séculos aquele livrinho, a Bíblia; e que a relia de quando em quando os primeiros capítulos do Gênesis, porque tinha, ali, um papel importante, que lhe fazia sentir-se, além de soberbo, vaidoso. Bem Ao contrário do papel que tinha nos dias de hoje. Só lastimava que a história da tentação tivesse sido tão alterada; descaradamente falseada pelos historiadores, que tiveram escrúpulos de citar com demasiada freqüência o nome dele e deixaram na obscuridade algumas das suas melhores façanhas. De modo que a estava reescrevendo e logo, logo publicaria uma edição correta e aumentada da Bíblia.
Depois me segredou que nunca dissera aquilo a homem nenhum, a não ser a mim. Esta foi à última conversa que tivemos, pois, no dia seguinte, não o encontrei mais no hospital.
Disse-me, a chefe da enfermagem, que ele era o escritor italiano, Giovanni Papini, nascido em Florença, e que fora transferido para o hospital psiquiátrico de lá. Fiquei sabendo também, que ao escrever sua grande obra “O Diabo”, endoidou e se convenceu de que era o próprio.
Diabo ou não, a verdade é que Giovanni deixou uma melancólica saudade das conversas no cair da tarde, que somada a que tenho de você, não há remédio que alivie.
Muito seu,
Maluco Beleza.
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• Neste texto, parodiei Giovanni Papini (1881-1956), com a intenção de homenageá-lo. A minha admiração por ele e por sua obra me impuseram essa obrigação. Giovanni exerceu notável influência no mundo das letras; é senhor de uma notável bagagem literária. Tanto seus romances como seus contos são impregnados de discussões filosóficas, especialmente no campo religioso. Cego, e paralítico, esse gigante das letras ainda encontrou meio de se comunicar com o mundo (com a ajuda de uma dedicada neta). Entre suas obras se destaca a mencionada no texto; é justamente seu último livro.
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RSérgio