IV
O tempo não pára, nem as circunstâncias prematuras que sofremos quando nos incriminamos por dar um simples beijo, um beijo é algo de belo, inofensivo, quando dele depende apenas o silêncio de um rosto qualquer. Um sorriso é quanto basta para renovar os punhos, amaciar as cicatrizes que sangra cá dentro. Amputar a dor seria fácil se a compreensão humana não demorasse tanto tempo a descobrir os hematomas provocados pela censura, pela indiferença. Quanto mais rápida é a evolução mais alto será o preço a pagar. Evoluir não passa de um verbo. quantos verbos são fechados nos livros por falta de uso? Evoluem as máquinas, o progresso anda rapidamente e as mortes consomem-se no abandono de um tiro certeiro, enquanto me passeio nas redes sociais, nas tecnologias que me engole sem que eu perceba que nada mudou. A mente humana sofre dentro do próprio desespero. As crianças já não brincam socialmente, já não sobem às árvores nem jogam ao pião, conversam com máquinas e pintam manequins com lápis negros de gesso. Assusta-me ver que o que temos de mais valioso se desliga com objectos controlados por controlo remoto. Os séculos vão passando e a força humana torna-se cada vez mais fraca, assim como se torna cada vez mais cega. Um dia seremos engolidos pelo vómito das máquinas.
(Continua)
Conceição Bernardino – in “do outro lado do espelho” - 2015