I
Seria tão fácil se tu nunca tivesses partido.
Todos os medos se resumiam apenas numa palavra, encontro, só a gaveta dos sonhos permanece, raramente a abro, o teu rosto permanece inerte, olha para o meu como um flash, repetidamente, nem uma palavra se move entre o sorriso e uns olhos amedrontados. Peço-te que fales. Que me digas onde te perdi. Já revirei todos os recantos da casa e nada.
Lembras-te como éramos felizes?
Talvez não, não sei. Comecei por te escrever mas nunca obtive resposta.
Sempre confiei nos lugares para onde nos levavas, como eram perfeitos, o sol vinha-nos buscar sem ter que nos mover, não existiam portas, as sombras faziam-nos cócegas enquanto colhia-mos algodão doce das nuvens.
À noite fecho os olhos e sinto a tua presença, leve como um cântico de embalar. Insisto em ver-te e não durmo. Desde que me deixaste as insónias visitam-me com frequência e, quando adormeço, o cansaço leva-me, fecha-me dentro de um frasco de odores fétidos.
Parto-me a meio e desejo não ter que voltar a dormir, quando tento pegar-te, nas mãos tudo se desfaz em pedaços, volto a construir-me e a pergunta é sempre a mesma.
Por onde andas?
Porque me deixaste tão imatura?
Comecei a construir templos indecifráveis. Todos os sorrisos eram meus, era assim que te sentia, foi assim que te conheci. Não podia seguir caminho sem que o caminho me seguisse.
Decidi chamar-te saudade, e viver por conta própria. Viver seria tudo o que mais queria, direi antes, caminhar. Caminhar é mais prático e o uso de canadianas por vezes ajuda.
Destruí o tempo, seguir ponteiros nunca foi o meu forte, e regras, só o teorema de Pitágoras me seduziu. Sempre me imaginei a contar estrelas à volta de uma fogueira, elevá-las ao quadrado para que deixassem de partir deus em tantas partes desiguais. O meu caminho nunca foi adequado ao espaço, qualquer sítio era agradável, independentemente, dos figurinos.
As pessoas inconformadas são assim, há quem lhes chame depressivas, psicóticas, loucas enfim, que importa o nome se a conformação não vem. Se as respostas só são obtidas com muita persistência e determinação, algumas nunca chegam à resposta, porque a resposta não é uma ciência exacta. Existem milhares de respostas para uma pergunta e há quem se conforme com a que mais se adapta à sociedade.
Voltei a perguntar-me o que foi feito de ti, retirei do bolso a tua foto e chamei-te vezes sem conta…nada…
(Continua)
Conceição Bernardino – in “do outro lado do espelho” - 2014