Apareceu do nada no hall do 3º andar, carregado de sacos plásticos, barba por fazer hirsuta e esbranquiçada, olhos claros com um olhar negro cor da pele, as calças eram farrapos que mal lhe tapavam o esqueleto e as partes pudibundas, um casaco amarrotado cuja cor já não se distinguia, calçado trazia a planta do pé rugosa e poeirenta.
Os outros miúdos arrancaram a correr e a gritar abandonando o jogo do botão que originava acaloradas discussões quando pedia meças a palmo, eu continuei ali de joelhos boquiaberto, não de terror como os outros mas sim de surpresa pelo homem da triste figura que se me deparava.
Caminhou diante de mim, como se me perpassasse sem olhar para mim, imune e ignorando o estupor que ostentava. Ao longo da varanda corrida que servia os apartamentos e cujas portas estavam abertas a triste figura a todas bateu sem alma e sem esperança, como um autómato, arrastando os pés num passo vagaroso e alquebrado.
Pedia esmola ou algo para comer ou até mesmo algo velho que pudesse depois vender ou trocar, eu seguia-o silencioso um ou dois passos atrás. Uma vizinha deu-lhe um espelho e despachou-o:
- Agora põe-te a andar daqui que não se suporta o cheiro – disse em voz severa e ríspida. Era a ultima casa, ele deu meia volta e recomeçou aquele compasso olhando e admirando o espelho, de repente este caiu no chão forrado de azulejos estilhaçando-se em vários pedaços, o homem olhou os, incrédulo ajoelhou-se e começou a recolher os pedaços em movimentos maquinais, eu ajoelhei-me também incapaz de ignorar o sofrimento que se sentia no rosto hirto e ossudo.
O homem pegou num dos pedaços e reflectiu-se nele o rosto, ele olhou-se no fragmento do espelho, as lágrimas explodiram-lhe nas íris, lamentando não se sabe o quê, se o espelho partido, se o fragmento de vida que lhe viu estampado.