Como sem-teto zombeteira e mal ajambrada, Sofia bem sabia que há de se lutar, mormente no mês de fevereiro em torno das caixas de cinzas. Haveria assim, ao menos uma tênue esperança que do alto os vizinhos batessem à porta, indiferentes às aulas de piano tocadas na sala de jantar. Em alto estilo, diga-se bem. Ela amava Chopin, Mozart e o intermezzo da Cavalleria Rusticana. Deliciava-se em tristes risos espalhando flocos de neve pela relva verde, inobstante as gotas de chuva que insistiam em martelar as vidraças, antes tão firmes.
Como se antecipando um presságio agourento de aziagos problemas, num acesso de ciúmes, extravasou toda a dor que sentia, aos gritos:
- Você ainda não entende o significado da palavra doer. Tudo o que ela não é não pode ser reunido numa só ideia central. Seria axiomático. Como uma ofensa desbotada pela chuva repentina.”
Da varanda, exercitando o ventrículo esquerdo ao clarão da lua recém-nascida, Grimaldi aparava a barba com um carvão em brasa, deixando para trás e bem mais abaixo a poeira levantada no estradão. Num esgar, olhando para o céu e quase chorando, disparou:
“- Há tantas incertezas nesta parte inferior da mancha. Ademais, o dia foi desagradável e cansativo. Sorrisos sempre poderão ser iniciados sem perturbar ninguém. Também achei um duplo sentido nas suas palavras. Não foi clara desta vez, minha cara Sofia.”
“- Grimaldi, meu querido”, falou ela pausadamente como uma árvore arrancada pelas raízes e mal escorada em fios de postes telegráficos. A seguir, foi mais rápida e incisiva.
“-Como poderia uma boa poedeira sobreviver à crise de produção dos ovos de duas gemas? Não foi minha culpa se você e todos esses seus conterrâneos da mesma idade tiveram que ir embora sem nem mesmo dar uma rápida espiadela no espelho. Terminando o aquecimento já posso quantificar e medir o teor de boro nas essências. Esse serviço não me entedia de forma alguma. Até gosto quando acaba o outono e as pessoas se calam.”
Aquelas palavras provocaram sobressalto no já debilitado casaco de Grimaldi. Foi de supetão que atirou, meio a esmo:
“- A queda d’água sempre recebe maiores atenções que a pá de vento. Também... sempre chove no verão. Com essa credibilidade imensa, os meteorologistas acabarão por se consagrarem. Cada um deles vai bater o martelo no pilão.”
Porém, titubeou na oração, sem muito êxito ou satisfação. Sem sujeito e nenhum predicado também. O que o obrigou a ouvir Sofia retrucar, com muita certeza do que cozinhava:
“- Esse tipo de concerto é bom para os inícios das manhãs. Quando ainda é possível pensar nas gotas de orvalho como colares de pérolas enfeitando as sépalas. Sim. por que pétalas sempre são bonitas. Não carecem adornos ou jaezes. Sépalas e cálices já não são dessa mesma laia.”
De algum modo, o mal estar súbito já em curso veio a transformar-se em águas límpidas e cristalinas correndo pelo álveo pedregoso de regato despencado de encostas sem inclinação suficiente para perfeito escoamento da lava pela chaminé do Kilauea. Foi meio ofendido que Grimaldi retorquiu com a voz já meio embargada, um tanto ondulante como cobertura de uma tenda armada nas areias do deserto por beduínos sonhadores com um oásis de tâmaras, fontes cristalinas e uma negra nubia de seios nus servindo vinho de um odre abarrotado.
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“- Não tenha tanta certeza assim, minha querida. Continue tomando seus comprimidos de acido fólico. Já que foi enganada e perdeu o cavalo agora bem sabe que sempre existem duas faces. Dois lados de um mesmo solo argiloso tratado como monazítico. Conforte-se e ache a placa de saída antes que de derretermos os pés. Não esqueça que este show é off road.”
Na fresca da manhã, uma réstia de sol ameaçava invadir o quarto espaçoso. Das paredes coberta com lençóis daquela grife asiática, Grimaldi tentava ficar acordado. Ou pelo menos, depois de dormir ontem à noite, acordar suavemente no dia de hoje. Olhava fixamente para os joelhos de Sofia, como que tentando aprender a decifrar o código existente nas placas pretas que pendiam dos ombros. Frenético e sôfrego esgoelava muito. Desnorteado, batia com os nós dos dedos provocando nódulos e nódoas na madeira marrom.
Bastaria, porém, cuspir silenciosamente na parte anterior e manter os olhos abertos à espera do lotação. Para resolver todo aquele impasse homérico, poderia muito bem ser capaz de encontrar a porta e o buraco da fechadura. Isso mesmo. Exceto se ele se mexesse. Ou a porta tremesse seguindo as colunas de ar saído do difusor iônico em vórtices audazes de colunas desenfreadas. E foi só que se sucedeu. Pelo menos nesta noite a que me refiro.