Como dissemos anteriormente, o “Método Cartesiano” foi elaborado muito mais para atender as questões cientificas, materiais, que para os assuntos classificados como “metafísicos”, “espirituais”, “abstratos” etc.
Assim, para melhor se degustar o ideário de Descartes acerca desses temas é preciso estudar a sua obra “Metafísica”, a qual, obviamente, serve de base para as digressões que seguem.
Antes de tudo será oportuno alertar ao leitor para esteja aberto para a mudança nos conceitos que serão observados, pois a genialidade do filósofo conseguiu abarcar com a mesma eficiência todo o conjunto da mente humana.
Desse modo, observa-se primeiramente que a célebre sentença “Cogito, ergo, sun” ou “Penso, logo, existo” deixa de ser tratada como um produto do raciocínio e passa a ser vista como uma intuição; ou seja, aquele tipo superior de sabedoria que habita a alma ou a mente do homem. O conhecimento que está além da reflexão, do aprendizado e que para os crédulos é uma dádiva divina e para os incrédulos é a resultante da “memória da espécie” e/ou de propriedades ainda ignoradas do sistema nervoso, do cérebro etc.
Mas, independentemente da crença sobre a sua origem, o fato é que a intuição é uma realidade. Uma forma de Saber que todos utilizam em momentos determinados, ainda que de modo inconsciente ou involuntário. E foi, pois, a intuição o elemento chave que Descartes utilizou para montar o seu Sistema Metafísico, sem abdicar, é claro, de sua principal ferramenta: a “dúvida sistemática”, a qual ele transformou em “instrumento auxiliar” para a sua investigação, haja vista que nessa quadra o “ato de duvidar de tudo” tem um alcance muito maior de que aquela “dúvida metodológica” que os cientistas usam em suas reflexões. O filósofo utilizou-o para questionar sistematicamente absolutamente tudo que seja concreto e abstrato, mesmo que o motivo para duvidar fosse insignificante.
Ele iniciou seus estudos, duvidando dos próprios Sentidos (1) (tato, visão, audição, paladar e olfato), os quais, a seu ver “nos enganam frequentemente”. Em suas palavras:
“Duvidemos dos sentidos, uma vez que eles frequentemente nos enganam, pois, nunca tenho certeza de estar sonhando ou de estar desperto! (...) Quantas vezes acreditei-me vestido com o robe de chambre, ocupado em escrever algo junto à lareira; (e) na verdade, estava despido em meu leito”.
Na sequência as suas dúvidas voltaram-se para as “Certezas Cientificas (2)” e para as próprias “Evidências Matemáticas (2)” sob o argumento de que “um gênio do mal ou a até mesmo a divindade poderia estar enganando-o por simples galhofa ou por motivos desconhecidos”.
Um argumento que à primeira vista pode soar como bizarro, pois, afinal, do chamado “Pai do Racionalismo” não se esperaria essa aproximação com crenças religiosas, ou míticas ou mitológicas. Todavia, novamente se faz necessário recordar que Descartes tratava a existência de Deus como um fato consumado, sobre o qual não se admitia sequer que fosse questionado, tanto por crença genuína, quanto por temer as represálias dos Católicos, já que o poder da Igreja não podia ser subestimado.
Seria preciso fazer algumas concessões para que se pudesse preservar o conjunto. Um comportamento, aliás, que não nos é distante, como se pode ver na história verídica que se conta abaixo, a qual serve para exemplificar algumas contradições aparentes nos pensamentos dos grandes sábios.
“Há cerca de quarenta anos, no Brasil, corria-se o risco de se ter confiscada uma obra de arte da Escola Cubista (de gênio como Picasso, por exemplo), porque os Ditadores burgueses e militares que usurparam o poder no País imaginavam que tais obras “Cubistas” traziam mensagens subversivas da Ilha de Cuba (sic). A concessão feita por marchands, proprietários e apreciadores daquele tipo de pintura foi a de classificá-las genericamente como Arte Moderna”.
Ademais, é preciso reconhecer o acerto do filósofo em duvidar das “Certezas Cientificas”, pois como se sabe, cada avanço na tecnologia implica na negação de “verdades” que até então eram absolutas. As recentes descobertas dos “exo-planetas” é um belo exemplo disso, haja vista que enterra as crenças absurdas a respeito da exclusividade de vida na Terra, que só vigoravam graças à ignorância a que o “gênio do mal” da desinformação condenava a humanidade. E o mesmo acontece na Matemática, embora de forma menos aparente, que frequentemente é confrontada pelas “Ciências Quânticas”; o que leva as mentes superiores a concordarem que os seus pilares não são tão graníticos como sempre se acreditou.
Dessa sorte, vê-se a grandiosidade mental de Descartes ao eleger a dúvida como a única ponte confiável para a verdade, pois se de tudo se pode (e se deve) duvidar; é impossível questionar essa mesma “capacidade de duvidar” e, por consequência, a existência do proprietário dessa capacidade.
Mesmo que o citado “gênio do mal” colocasse falsidade em todas as outras conclusões, nessa, ele não lograria êxito.
Assim sendo, considerando-se a sua amplitude, o célebre “Cogito” ultrapassa o “reino das ideias” e não deve ser considerado como a origem (2) do chamado “Idealismo Filosófico”, cujo cerne é o sujeito que pensa e as suas ideias, como a base de todo conhecimento.
Na verdade, a sua associação é com a Ontologia, já que ele comprova a efetividade de Ser, de Existir; para além das simples aparências, do mero conjunto de “pensamentos e homem que pensa”.
Nesse nível mais “espiritual”, mais “essencial”, Descartes assumiu uma face, digamos, mais Solipsista (3), pois a “sua certeza” restringia-se a si mesmo, ao seu próprio existir, ser. Ele só tinha a certeza de que o seu “ser pensante” existia indubitavelmente, mas não poderia ter a mesma convicção em relação aos demais. Em suas palavras:
“Pois, sempre duvido desse objeto que é (o) meu corpo; a alma é mais fácil de ser conhecida que o corpo”.
E como o Solipsismo remete à solidão, foi através do aprofundamento da mesma que ele conseguiu escapar-lhe, pois, surgiu-lhe, então, a extraordinária ideia da “Perfeição”, do “Infinito” e de Deus. A partir daí a sua solidão termina, já que outro Ser passa a ter a sua existência reconhecida como absolutamente certa. No mínimo, “dois Seres” existiriam de forma inquestionável: ele mesmo e Deus.
Mas como ele conseguiu deduzir essa segunda existência comprovada, usando apenas o raciocínio? Vejamos:
(Peço licença ao leitor (a) para usar a “primeira pessoa” nesse trecho com o objetivo de facilitar a exposição)
“Mesmo sendo finito e imperfeito, ainda assim tenho a clara noção de que existe um Ser perfeito e infinito e por isso eu tenho que admitir que foi ‘Ele’ quem colocou esta noção sobre ‘Si’ em minha mente, logo, ‘Ele’ existe indubitavelmente. E, note-se, que sendo um “Ser Perfeito” é um “Ser Bondoso” e que por isso não colocaria falsas ideias em minha mente, o que me garante que elas são verdadeiras. Assim sendo, eu posso crer na efetiva existência de tudo”.
Perceba-se que Descartes fez o caminho inverso ao de Santo Tomaz, que pretendeu comprovar a existência divina através da existência do Universo que os Sentidos (tato, visão, audição, paladar e olfato) captam; enquanto que Descartes abdicou das Sensações, por saber de suas fragilidades, e se utilizou apenas do exercício reflexivo para escorar a sua conclusão. Em suas palavras:
“Compreenda-se que, para tanto, não tenho o direito de guiar-me pelos sentidos (cujas mensagens permanecem confusas e que só tem um valor de sinal para os instintos do ser vivo). Só posso crer no que me é claro e distinto (por exemplo: na matéria, o que existe verdadeiramente “é” o que é claramente pensável, isto é, a extensão e o movimento)”.
Contudo, como não poderia deixar de ser, a argumentação de Descartes encontrou oposições e alguns o criticam sob a alegação de que ele se limitou a um círculo vicioso, onde: A evidência me conduz a Deus e Deus me garante a evidência. Porém, os seus adeptos logo rebateram, dizendo que a “evidência” cartesiana seria de outra natureza; seria a “evidência ontológica” que através do “cogito” – da dúvida sistemática –também fundamenta os objetos matemáticos (2+2=4, sempre) graças ao seu rigor.
Ainda sobre essa questão, na “5ª Meditação”, Descartes atualiza com cores mais claras e nítidas o famoso “argumento ontológico” de Santo Anselmo (Anselmo de Aosta ou da Cantuária, Itália atual, 1033-1109) ao afirmar que:
“Não mais se trata de partir de mim, que tenho a ideia de Deus, mas antes da ideia de Deus que há em mim. (...) Apreender (ou captar) a ideia de perfeição e afirmar a existência do Ser perfeito é a mesma coisa. (...) Pois uma perfeição não existente não seria uma perfeição”.
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Aqui chegados, damos por findas as considerações sobre Descartes e o Racionalismo, registrando nossa profunda admiração por esse genial Pensador que contribuiu vigorosamente para que o homem se libertasse das amarras do obscurantismo e vislumbrasse a realidade com mais veracidade.
Na sequência, convidamos o amigo leitor (a) para nos acompanhar no apêndice que segue e que trata do Empirismo, o sistema filosófico desenvolvido em oposição ao Racionalismo e que por muito tempo balizou as concepções do Pensamento moderno do Ocidente.
Rio de Janeiro, 29 de Dezembro de 2014.
Nota do Autor1 – ao contrário dos “Empiristas” que lhe foram antagônicos incensavam como a fonte exclusiva do Saber. Veja apêndice sobre o Empirismo, que segue.
Nota do autor2 – e também porque o Idealismo tem a sua origem nos primórdios da Filosofia grega, sendo as suas versões “modernas”, a rigor, uma atualização daqueles postulados.
Nota do Autor3 – Solipsista – a situação ou o indivíduo que se volta completamente para o seu interior, desprezando qualquer contato externo.
Lettré, l´art ET la Culture. Rio de Janeiro, Verão de 2014.