Contos : 

O serra-velho

 
Todos conheciam o velho Herculano, em toda Várzea Pequena, por sua rabugice e rigidez de princípios. Tão rígidos que o faziam caminhar ereto e arrastar sobre as alpercatas, seus quase dois metros de altura. Desde jovem, o apelido de Espanador da Lua o tirava do sério. “Chegara algumas vezes ás vias de fato” - dizia o delegado Pedrosa , que em duas ocasiões viu - se obrigado a desarmá-lo.Confiscou-lhe o velho fuzil , herança da revolução de 1930, que tentara acionar contra seus desafetos. Ficou a ameaça de envio á terra de pés-juntos, o conhecido Alto do Cemitério.
A porta do bilhar era a barricada dos seus inimigos, a rapaziada que tentava elevar o insulto á categoria de arte, entre uma encaçapada e outra. O delegado examinou a arma, constatou-lhe o óbito por enferrujamento múltiplo de peças e devolveu-a ao furibundo Herculano.
Intimamente, gargalhava e tinha ganas de esquecer a responsabilidade e gritar pelo Espanador da Lua , tal a rabugice do velho . só suportada pelo seu cão Babalu , cego pela idade , apenas latindo durante a gritaria do transtornado dono , um viúvo que sepultara sozinho a esposa e dois filhos ; a piedade era sentimento perigoso , nos tempos da gripe espanhola. .
Rosto vermelho, enrugado, cansados olhos azuis,a boca em permanente esgar de insatisfação com o mundo , dava-lhe um ar de percepção constante de um fedor cósmico, mau cheiro universal ; excrescência espiritual de vidas pretéritas , afirmava de dedo em riste , Belmiro, coletor de impostos e kardecista militante .
Invariavelmente encadernado em brim azul , desfilava em desastrada simbiose com o cão, um escorando o outro , na improvável trajetória até lugar nenhum . O remanescente cabelo vermelho , no alto da cabeça , esvoaçante ao sabor do vento : uma biruta do seu humor cambiante.
Era Semana Santa, padre Dagoberto já cobria de panos roxos os altares da matriz, com o auxílio do fidelíssimo apostolado de Maria, bastião municipal da moral e dos bons costumes católicos. Tomava-se cachaça em xícaras de café, nos bares, para manter o clima contrito e não desagradar o padre, que também entornava uma vez por outra, bonachão de corpo e alma.
Nas primeiras horas da quinta-feira, reuniram – se quatro rapazes, em frente ao sobrado do velho Herculano, escolhido por unanimidade e votação única, o serrado oficial de 1950. Vinícius, Romualdo, Sérgio e Bartolomeu, a estirpe de Satã conforme o sufragado Herculano, portava um serrote, um pedaço de tonel de bacalhau, chocalho, um martelo e um pedaço de tábua.
O sobrado completamente ás escuras, mas apagar as luzes era defesa muito manjada dos velhos e velhas de Várzea Pequena; apenas estimulava o ânimo baderneiro dos serradores. Mais afoito, Vinícius iniciou o julgamento, clamando pelo serrado:
- Acorda para ouvir teu testamento, e não morrer como um jumento!
Prosseguiu com a leitura empolada do testamento do velho Herculano, em seguida, perguntou sobre o destino dos bens; á cada tresloucada resposta do grupo, o inevitável e tradicional seguimento de rezas, gritos e lamúrias em falsete, sempre de olho na residência, pois a qualquer momento, poderia chover chumbo grosso, sabe Deus o arsenal que o velho armazenara ao longo dos anos.
Por fim, entre lamúrias a pergunta fatal: Poderiam cavar a cova? Na falta de resposta, tomando do pedaço de madeira, improvisou Romualdo uma cova rasa, sob o tremor do frio e do riso convulsivo. Ainda aguardaram ansiosamente uma resposta, o remate da madrugada hilária. O velho sobrado, permanecia silencioso, todas as luzes apagadas, até mesmo a do portão; cheiro de presepada no ar.
Aguardaram até o silêncio tornar-se incomodo, quem sabe, até serrável naquele esboço de quinta-feira santa.
Sérgio adiantou-se: um convidativo portão apenas encostado; avançaram os outros, uma maçaneta destravada deu acesso á sala de estar: sobre a mesa, um grande rádio ligado e sem som; à luminosidade do enorme dial, via-se Herculano placidamente recostado na cadeira de balanço, o velho fuzil deitado sobre as coxas, mãos apoiadas sobre a arma, a cabeça inclinada para trás, uma face tranqüila de quem dormia, na fria pacificação da boa morte, silenciosa e sem sofrimento. Junto á cadeira, Babalu lambia preguiçosamente as patas; era também, parte do silêncio.

N.A : A brincadeira do serra – velho , chegou ao Brasil , nos fins do século XVII , segundo Câmara Cascudo , pelo Rio de Janeiro .Ocorria na noite de quarta – feira ou na madrugada da quinta – feira santa ; reunia um grupo de rapazes , que após a meia – noite , saía pela cidade , “ serrando “ velhas e velhos , principalmente aqueles mais irritadiços. Praticamente acabou em meados dos anos 60 .







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Enviado por Tópico
Vania Lopez
Publicado: 26/01/2015 02:05  Atualizado: 26/01/2015 02:05
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 Re: O serra-velho
fiquei com a alma em papel Índia, encadernada de azul profundo.
aprendendo ao te ler.beijo André, obrigada