René Descartes nasceu na localidade chamada La Haye, atualmente rebatizada com seu nome, no Distrito de Indre-et-Loire, a cerca de trezentos quilômetros da capital, Paris.
Sua mãe, Jeanne Brochard, faleceu antes que ele completasse um ano de idade e, por isso, os primeiros cuidados que recebeu foram de familiares próximos e das criadas e amas de leite, que a boa situação financeira da família permitia manter na casa.
Dessa sorte, amparado materialmente e com acesso à informação e ao Saber, René já possuía alguns conhecimentos antes mesmo da vida escolar.
Aos oito anos de idade ingressou no Colégio de Jesuítas “Royal Henry Le Grand”, na localidade de La Flèche, onde foi aluno de grandes mestres, dentre os quais merece destaque o Padre Estevão de Noel que lhe ministrou as primeiras aulas de Lógica, que, posteriormente, exerceram enorme influência em sua ideologia.
Em La Flèche permaneceu de 1604 a 1614; e, embora viesse no futuro a fazer críticas contra a sua pedagogia, calcada nos métodos de ensino dos filósofos Escolásticos, pode-se depreender de suas anotações que ali ele aprendeu valiosas lições.
Ademais, as suas insatisfações eram compensadas por alguns privilégios que os Padres lhe concediam, como, por exemplo, o direito de levantar-se quando quisesse – o que, aliás, criou-lhe o hábito de ficar meditando na cama até o horário do almoço. Além disso, as suas boas maneiras e, principalmente, a sua inteligência superior cativaram os mestres e consolidaram o apreço que eles lhe dedicaram, embora o achassem “deficiente em filosofia (sic)”.
E, realmente, apesar das boas condições gerais, ele tinha muita dificuldade em se submeter ao formato de ensino da Instituição por considerar que a sua matriz, a Filosofia Escolástica, não produzia nenhuma certeza, ao contrário da Matemática que permite a comprovação de todas as suas teses. E essa insatisfação ficou explícita na crítica que ele fez àquele modelo ensino em sua obra “O Discurso sobre o Método”. Em suas palavras:
“Não encontramos aí nenhuma coisa sobre a qual não se dispute (...). Só as Matemáticas demonstram o que afirmam (...). As Matemáticas agradavam-me, sobretudo, por causa da certeza e da evidência de seus raciocínios”.
Desse modo, sentindo crescer a insatisfação, tão logo pôde, o jovem abandonou a escola. Segundo ele:
“Assim que a idade me permitiu sair da sujeição a meus preceptores, abandonei inteiramente o estudo das letras; e resolvendo não procurar outra ciência que aquela que poderia ser encontrada em mim mesmo ou no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, conviver com pessoas de diversos temperamentos e condições”.
Porém, antes de encerrar definitivamente os seus estudos regulares, ele ainda cursou Direito na Universidade de Poitiers, onde se graduou em 1616, embora jamais tenha exercido a advocacia, preferindo correr o mundo em busca de sabedoria.
Mas, antes de se aventurar, o jovem passou uma prazerosa temporada de férias com a família, desfrutando de elitistas lazeres como a equitação, a esgrima, os banquetes, as festas etc. Nessa época, aliás, escreveu um pequeno livro sobre a arte dos sabres que acabou se perdendo.
Findo o delicioso descanso em Rennes, Descartes partiu para a Holanda e se alistou no exército do Príncipe Mauricio de Nassau (o mesmo que tomou a cidade de Recife, no nordeste brasileiro) onde viveu uma rotina extravagante, haja vista não aceitar receber nenhum soldo, comprar com seus recursos o seu equipamento e as suas armas e comportar-se mais como um “aluno de escola militar” de que um oficial de um exército regular.
Vivia, então, o auge de seus vinte e três anos de idade e dedicava a maior parte de seu tempo ao estudo de Matemática em companhia de seu amigo Isaac Beeckman. Foi nessa ocasião que adotou a divisa “Larvatus Prodeo”; ou seja, “Caminho Mascarado”, numa provável alusão, segundo Pierre Frederix, à sua condição de “jovem sábio disfarçado de soldado”.
Em 1619, colocou-se a serviço do Duque da Baviera, na Alemanha, e passou o inverno aquartelado às margens do rio Danúbio, gozando o conforto que a sua fortuna permitia e da tranquilidade que o período de paz proporcionava a todos.
E nesse tranquilo dolce fair nient, na noite de 10 de novembro de 1619 ele teve um sonho “profético” no qual lhe chegou “a mensagem” de que a ele caberia unificar todos os saberes por meio de uma “ciência admirável” de sua invenção (sic).
Recorte - Enquanto escrevia o último parágrafo, eu quase que pude vislumbrar o assombro do leitor (a) ao ler que o “Pai do Racionalismo” acreditava com tanto fervor em sonhos, mensagens milagrosas, profecias e quejandos; mas o fato é que ele acreditava, sim, e embora tenha aguardado até 1628 para publicar o seu primeiro escrito “Regras para a direção do espírito”, aquele sonho definiu a sua inclinação e formatou o seu ideário.
Nem os gênios escapam das contradições da vida e por isso, antes de lhe censurar é oportuno dar-lhe algum desconto, tanto pela imaturidade típica de sua idade, quanto pela religiosidade supersticiosa que a todos e a tudo impregnava naquela época. Ademais, esse paradoxo foi regiamente compensado com a consistência e validade de sua argumentação nos anos seguintes.
Nesse seu trabalho de estreia, Descartes colocou a ideia de que a unidade do espírito (da mente) humano seria capaz de inventar um método único (universal) e suficiente para esclarecer todas as dúvidas, por mais difusas e complexas que fossem.
Uma proposta eivada de misticismo, motivada muito mais pela fé irracional na capacidade do homem, de que por reflexões lógicas. Mas, como se disse, foi um deslize que lhe deve ser perdoado.
Em seguida, ele elaborou um Tratado sobre a Física, mas logo o abandonou por ter se assustado com a condenação sofrida por Galileu (Astrônomo e físico. Itália atual, 1564-1642) através da hedionda Santa Inquisição, em 1633.
Na verdade ele não precisaria temer a Igreja Catolica, pois vivendo na Holanda protestante ele estava a salvo de sua ignomia, mas a sua lealdade ao Catolicismo, embora não fosse um devoto ostensivo, levou-o a rejeitar a obra.
Em 1635, a par de seus trabalhos, o filósofo viveu uma grande alegria com o nascimento de sua filha, fruto de um romance com uma serviçal. Porém, a criança, Francine, morreu aos cinco anos de idade e, assim, o ano de 1640 ficou-lhe marcado como um período de enorme sofrimento.
Em 1637, decidiu-se a publicar três resumos de suas concepções cientificas:
a) Dióptrica
b) Os meteoros
c) A Geometria
Os três escritos receberam vários elogios pela sua qualidade excepcional, mas, de fato, o que passou à história e se celebrizou foi o prefácio da obra, o famoso “Discurso sobre o Método”, do qual falaremos adiante.
Em 1641, voltou à ribalta e publicou a obra “Meditações Metafísicas”, que para muitos é a sua obra prima.
Em 1644, publicou “Os princípios da Filosofia”, dedicando-o à princesa Elizabeth, que o considerava uma espécie de seu “diretor de consciência”. E a farta correspondência entre ambos, demonstra o quanto ele lhe influenciava de fato. Foi também nesse ano, numa breve viagem a França, que ele teve um contato casual com o embaixador francês na Suécia, Chanut, que o pôs em contato com a rainha Cristina daquele país, a qual, sua admiradora, logo o convidou para se instalar em sua corte.
Após certa hesitação, Descartes incumbiu o seu editor de publicar a obra “Tratado das Paixões”, dedicada a Isabel da Boêmia, e seguiu para o norte, chegando a Estocolmo no mês de outubro de 1649.
Antes, porém, em 1647, foi premiado pelo monarca francês com uma pensão vitalícia e iniciou o seu trabalho chamado “Descrição do Corpo Humano”. Em 1648, após uma entrevista com Frans Burman (Holanda, 1628-1679), começou a redigir “Conversa com Burman”.
Na nova pátria, lecionava Filosofia para a soberana, mas o horário que ela escolheu para as aulas, às cinco horas da madrugada, contribuiu para aumentar o sofrimento que o frio nórdico lhe causava e não demorou em que ele adoecesse de pneumonia.
Arrependido por ter vindo morar “no país dos ursos, entre rochedos e geleiras”, Descartes recusou tratar-se com os médicos locais e o avanço incontido da enfermidade culminou em sua morte no dia 09 (11 para alguns) de fevereiro de 1650.
Como um católico em um país protestante, foi enterrado num cemitério de crianças não batizadas, em Estocolmo.
Em 1667, seus restos mortais foram repatriados para a França e enterrados na Abadia de Sainte-Geneviève de Paris. Nesse mesmo ano a Igreja Católica colocou os seus livros no famigerado Índex das obras proibidas.
Em 1792, a “Convenção” projetou a transferência de seu túmulo para o Panthéon, ao lado de outras grandes figuras francesas, mas a mudança não se concretizou e seu esquife está na igreja de Saint-Germain-des-Prés, Paris, desde 1819.
Lettré, l´art et la Culture. Rio de Janeiro. Primavera de 2014.