Araripe Coutinho
(Texto escrito dois meses antes de sua morte ocorrida em 9 de dezembro/2014 em Aracaju-Se.Seis dias depois, faria 46 anos).
A morte não existe. É fato. Por não existir ela é superior. Cobra sucuri cheia de fome. Ela não é. Não prescreve, nocauteia e nos serve com lentilhas.
A morte é azeda. Carne cheia de vermes. Isenta de si mesmo ela nos toma. Pasmos, não decodificamos o aple. Solitária, a morte rosna contente e faz pose para uma foto no stagram.
A morte é réptil. Vidro perfurando a jugular da amante. A morte é santa. Toalha de organdi, vaso de murano. A morte é alta. E por não ser, ela arremete quando deveria descer. A morte é porca. Cínica. Umbralesca. Desliga as máquinas. Fósforo e urano.
A morte nos enxovalha. Não quer louboutin, louis vuiton, nem Dior. A morte cansa. Ela mesma se exaure pelo portal de ágoras e nos transfigura em frente a uma tela de Monet. Trágica e sem parcimônia, põe a melhor seda, o melhor tafetá e se aproxima do altar de agouros. A morte é cintilante, brilhante, rubi, porcelana.
A morte é morta. Coduz o seu próprio funeral pelas manhãs oblívuas, chafurda, grasna e acaba com tudo. Até o silêncio permanece aos gritos. Porque a morte adora escândalo, mas tem receio. A morte é Dante na selva escura. Gosma, pus, gangrena roendo o tecido até não querer mais. E porque a morte é isso: ela é cínica, rica de manobras, silhueta de Frida Kahlo, perfume de Guerlain, alfombras.
A morte ri. Gargalha possuída de poder e põe as ancas inteiras sobre o amante. A morte humilha, traga, toma seu último lexotan sem red label. Ela quer mais. Não cansa. É víscera de Dalí, quadro de Tomie Othake, dedo apontado para Rodin. A morte é morta. Flora inseticida, animal no cio, feno ao fogo, enquanto a onça corre loucamente pela savana em chamas. A morte é gente. Cisterna de anêmonas e vertigens.
A morte espreita o nosso último suspiro, sem nos dar mais chance. Soberana, a morte triunfa sobre a própria morte e despudorada verga seu peso sobre as amoras murchas. É rico lilás ardendo nos contrários. Jade, murano, opalina, ouro. A morte nos impõe um cetim de sangue.
A morte é ágata. Infância destituída de boneca. A morte é floresta de eucaliptos sem destinos. O vermelho agosto que ensandece. Morte rímel sem assombro. A morte não tem céu, tem firmamentos. É solar, cratera de vulcão. Deserto o quarto vazio de um filme de Amodóvar. A morte é Curt Cobain, Marilyn Moroe, John Lennon – papiro de Ang Lee.
A morte vence sempre. Domina a pedra em que te tornarás Paul Auster. Janis Joplin partitura de Nina Simone num pub de Londres. A morte dança. É um Nureiev, um palhaço de Deus despencando da lona. A morte é trufa. Confeitaria Colombo. Rio. De janeiro.
A morte tem força de turbina. Esgueira-se sem piedade sobre o mar. Desfrutando de tudo, altaneira, a morte põe-se a descansar, flagelada de si, desmoronando à beira de si mesma.
Poemas em ondas deslizam nas águas.