(Ao Pedro, para que viva na memória)
Ao contrário de outras crianças, ele não tinha qualquer fascínio pela maior parte dos brinquedos que por altura do Natal a televisão freneticamente publicitava. Não se lhe brilhavam os olhos, nem despertava nele qualquer euforia, quando algum anúncio exibia o mais exuberante e sofisticado brinquedo electrónico de múltiplas funções. Gostava de apreciar a forma como o artigo era exposto no anúncio, mas pouco mais do que isso o prendia. Nunca insistiu duas vezes que fosse para que alguém lhe oferecesse algo que, eventualmente, lhe prendesse alguma admiração. Era um menino que só incomodava por quase nunca incomodar ninguém. Chama-se Pedro e nasceu dois dias antes do Natal.
Gosta de livros, de todos os livros, de computadores e jogos de consola, de olhar o céu em noites de luar. Fascinava-o de tal forma a noite limpa e as estrelas, que se debruçava na janela e ficava pela noite dentro contemplando de olhar fixo e, agora sim, de olhos brilhantes e rendidos ao espectáculo, por tudo aquilo que lhe era proporcionado. Nunca disse por que lhe fascinava assim tanto a noite, o luar, as estrelas e o céu. Nunca explicou esses fascínios. Nunca ninguém ousou sequer alertá-lo para o tardar das horas, nas noites em que ele se prendida ao parapeito da janela, solto da sua contemplação… O seu silêncio traduzia o seu bem-estar. O silêncio que o envolvia fazia bem a quem por perto dele se deixava estar. Apetecia ficar por perto e adormecer por ali e só acordar quando ele, depois de muito tempo, quisesse finalmente dormir. Era inexplicável aquela sensação de querer ficar parado a olhar uma criança a olhar a noite pela janela do seu quarto.
Um dia, numa tarde de sol, Pedro estava sentado na entrada da varanda da casa da avó. Uma brisa suavizava o forte calor que se fazia sentir. Mas nem o sol o parecia incomodar, nem a brisa lhe parecia emprestar qualquer desconforto que o obrigasse a desviar da corrente de ar. Estava de tal forma prendido ao livro que segurava nas mãos, que nem mesmo o ondular do cortinado, que lhe roçava na cara, lhe fazia desviar a atenção das páginas do livro que calmamente folheava. Seria compreensível esta concentração na leitura, se de algum best-seller se tratasse o livro, ou de uma qualquer obra premiada, pela qualidade do seu argumento, complementado por ilustrações fantásticas. Espantoso foi saber que aquele livro não era mais que um gordíssimo dicionário da língua portuguesa. Quando lhe perguntaram por que gostava tanto daquele livro, responde: “porque tem muitas folhas, muitas palavras. E eu quero aprender todas as palavras. Se souber muitas palavras, irei saber sempre o que me querem dizer”. Mas mais espantoso ainda foi ouvir tal resposta de uma criança com apenas cinco anos de idade!
Pedro, agora com catorze anos, era já um miúdo crescidinho. Mantinha a mesma calma e apetências que arrastava desde criancinha. Gostava cada vez mais de computadores, da noite, das estrelas e de livros – cada vez mais – mas agora também já tinha as suas “manias”. Não gostava do cabelo curto, de muitos elogios à sua qualidade de rapazote bem parecido. Queria-se discreto e continuava a não gostar de prendas supérfluas, quer no aniversário, quer no Natal. Continuava a preferir livros, mesmo usados e emprestados. Mantinha a mesma serenidade. E era de tal forma a sua forma serena de ser que perto dele parecia que algo de transcendente nos envolvia de conforto!... Por vezes embaraçava-o a “colagem” que as pessoas lhe faziam. Não queria assumir qualidades diferentes de qualquer outra pessoa. Queria-se um vulgar rapaz e entendia que ainda não lhe ficaria mal identificar-se com os jeitos e manias de uma criança, mesmo que agora um pouco mais crescidinha.
No Verão do ano seguinte o Pedro adoeceu. Foi-lhe diagnosticado um problema grave no sangue. Foi internado no hospital e aí permaneceu em tratamentos um longo período de tempo. Continua a receber e a agradecer a oferta de livros, a falar de computadores e a querer sempre o cabelo muito bem cuidado. O seu cabelo era liso e aloirado. Mesmo quando deitado queria-se sempre bem penteado e nunca deixou de sorrir, confortando quem perto de si permanecia. Entre ele e as visitas dificilmente de detectava quem estava, deveras, doente. Porque ele fora sempre de rosto de tom claro, hoje quase se não distinguia a palidez da sua cor natural.
O seu problema de saúde tinha agravado, a quimioterapia a que se sujeitaria parecia não conseguir combater a sua terrível doença. Já quase ninguém acreditava na sua recuperação.
Apesar de muito debilitado, foi-lhe permitido passar o Natal em casa junto da família. Chegou a casa no dia do seu aniversário e regressaria ao hospital no dia vinte e seis.
Na noite de consoada muitos foram os familiares e amigos que o quiseram visitar em casa. Durante todo esse dia o céu cinzento parecia querer emprestar à quadra natalícia um dia triste. Pelo final da tarde começou a chover e o vento a soprar um ar gélido e desconfortante. A noite arrefeceu acentuadamente. Para uma noite de consoada, aquele não era o ambiente climatérico preferido!
Quando já perto da meia-noite todos se preparavam para a tradicional troca de prendinhas, o Pedro pediu à mãe que lhe abrisse a janela do seu quarto. A mãe advertiu-o de que estava muito frio e que isso não seria benéfico para o seu frágil estado de saúde. Mas ele insistiu… e a mãe cedeu. Para espanto dela – e depois de todos lá de casa – o céu estava limpo e mais brilhante e estrelado do que em qualquer noite de luar de Agosto! O ar soprava morno, tão incrivelmente agradável que toda a gente se debruçou nas outras janelas da casa a olhar em contemplação o céu!... O Pedro, com a voz enfraquecida, começou a identificar uma por uma as estrelas e a falar delas, demonstrando perfeito conhecimento. E toda a gente, atenta e deslumbrada, aprendeu a compreender melhor o seu fascínio pelo céu! Quando lhe perguntaram como aprendera tudo aquilo, respondeu que tinham sido os livros que lhe ofereceram todo aquele conhecimento.
O Pedro morreu passado pouco mais de um mês. Morreu sem que lhe tenha caído o cabelo, apesar do violento tratamento químico e que tinha sido submetido.
Desde então, sempre pela noite de Natal, ao chegar a meia-noite, leio à janela uma página do livro que o Pedro deixou ficar poisado à cabeceira, antes de se aconchegar no seu mais longo sono…
João Luís Dias
*não ficcionado