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CARTA ABERTA PELO NATAL

 
Caro Senhor,
já fui criança, naturalmente, e nunca gostei ou acreditei nas suas intenções. Perdoe-me a franqueza, mas tinha de lhe dizer isto com toda esta frontalidade. Não sou pessoa de papas na língua. Também detesto a fatiota vermelha que usa (a lembrar o capuchinho vermelho); assenta-lhe mal, fica-lhe pior e dá-lhe um ar espalhafatoso do caneco. Já vi muitas crianças a chorar compulsivamente, quando as obrigam a posar para a fotografia a dar-lhe um beijo ou um abraço. Admiro-me como ainda não notou esse desconforto da ganapada ao fim de tantos anos de poses contrariadas. Bem, mas não são só questões estéticas os motivos deste meu desagrado. Nunca o apreciei, mas por motivos bem mais sérios. E saberei justificar este desencanto.
O Natal, que festeja o nascimento de um Ser perfeito, supremo, na humildade, na simplicidade, a ter um pai a simbolizá-lo, não deve ser um obeso cavalheiro desengonçado a carregar um saco cheio de bonecos, gaitas ou outras coisas plásticas do género. Quanto mais o saco transborda mais o desvia do espírito de Natal. E não me venha com a treta de querer oferecer prendinhas as todas as crianças. Perguntar-lhe-ia então por que será que sempre o vemos em supermercados artisticamente decorados com milhares de luzes coloridas, nas ruas das cidades atulhadas de comércio e a fervilhar de ostentação, em escolas com visita pré anunciada, lado a lado com o palhaço – que até cobra cachê pela visita – e não o vemos nos caminhos de lama, nas ruas sem nome, entre as crianças sem sorriso, de tantas e tantas terras do mundo? Por que será, meu amigo, que só o vemos a dar uma pequenina volta pelo mundo num trenó, quando o mundo é bem maior?! A propósito, já experimentou andar de trenó, puxado por renas gordas e de pêlo farto, nas terras áridas de África, ou pelo chão regado de urina de uma favela da América do Sul?! Pois, nunca se apercebeu que esse meio de transporte das terras geladas não poderia simbolizar a sua universalidade!
Gostaria, caro Senhor, e já este Natal, que em vez de andar por aí a prometer subir e descer chaminés, fazendo figura de tonto, entrasse pela porta maior dos faustosos "palácios" de alguns senhores, que se governam em vez de governarem os seus povos, e lhes dizer bem na cara que as crianças do seu país, para além de continuarem a não ter Natal, vão morrer de fome nessa mesma noite e nas noites seguintes. Se o fizer, quem sabe, passarei a guardar-lhe alguma deferência.

João Luís Dias

*volta, como volta sempre o Natal

 
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jluis
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