“(...) Eu canto porque o instante existe e a minha Alma está completa. Não sou contente nem triste, sou poeta!”
E é com as doces palavras de Cecília Meirelles que ouso falar-vos do livro “Pensar-te” de Mel Almeida. Porque o poeta é um ser inspirado e inspirado quer dizer, IN SPIRITUS, ou seja, com o Espírito. É o homem em conecção com algo Maior, que, descendo sobre si, já está em si, e o transcende.
“Ser poeta é ser mais alto, é ser maior do que os homens! Morder como quem beija! É ser mendigo e dar como quem seja, Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!” Diz Florbela Espanca.
“Pensar-te”, é, neste caso, a mulher (Mel) em comunhão com o seu Espírito de poeta. Espírito que, ligado à Água, ao Fogo, à Terra e ao Ar se manifesta e afirma no poder longínquo e profundo da palavra saudade. Tão Portuguesa! O Poeta é aquele que dá forma ao sem forma. Escreve sobre o que sente. Mas o que sente ele não vê! Na poesia passa a ver! Ele é aquele que na subjectividade do seu ser se torna objectivo quando encerra nos versos as prisões que o manipulam. E liberta-se ...
“É ter de mil desejos o esplendor, e não saber sequer que se deseja! É ter cá dentro um astro que flameja, é ter garras e asas de condor!” Continua Florbela.
Escrever, mais do que um acto criativo, sendo-o, é um acto de coragem e liberdade, de Alquimia e mutação …
E em quem ou no que pensa Mel Almeida em “Pensar-te”? Em si? Na Vida? No Amor? No desamor? No sofrimento? … Em tudo isto e mais ainda, sobretudo na escalada dos seus medos, nos degraus das suas ilusões, na lista dos seus desamores, no canto dos seus Fados. Mel Almeida pensa-se e pensa-nos pensado-se em “Pensar-te”! Isso que faz de “Pensar-te” uma obra completa porque se sente a força do pensamento de pensar-se. E a obra é inteira. O poeta sente-a profunda sendo um todo com ela.
“É ter fome, é ter sede de Infinito! Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim … é condensar o mundo num só grito!” Florbela Espanca
Os poetas são assim! Seres que ouvem a voz da Alma, que sentem e contam em palavras o âmago desse profundo sentir. Seres que nos despertam para o inatingível, para o não visível, para o não perceptivel. Seres que se sentem para lá do sentir, que se ouvem para lá do audível, que se veem para lá do visível. Seres estáticos em movimento num tempo intemporal que corre fora do comum das horas, corações que batem fora do peito, lágrimas que correm sem face, punhos que tremem sem mão, pensamentos duros que vacilam. E a consciência do Amor atinge no poeta o seu expoente máximo!
“E é amar-te, assim, perdidamente… É seres alma e sangue e vida em mim, e dizê-lo cantando a toda a gente!” Finaliza Florbela .
E nós que bem sabemos quão grande é a busca que fazemos em direcção ao “Eu perdido”, cruzamos a vida precisando deles. Os poetas! O mundo anseia-os, necessita-os. Pois despertam-no para o “a mais” que falta além da posse física, além do mundo visível. Preenche-se enfim o Vazio das Almas. É esta, para mim, a Alma mística dos poetas que sempre vagueia tão distante e tão perto das Almas alheias, e que, “Pensar-te”, nos revela, conta, manifesta, nesta tarde de Évora. Berço de escritores, sacerdotes, poetas, cavaleiros, místicos e ascetas. Terra-palco onde, Amor e desamor, num imenso e intenso diálogo, recitaram a História de que somos herdeiros e nos corre nas veias do coração. É a nossa História!!! Tudo isso que o vento não levou e nos corre nas veias do inspirado pensamento ...
Mel Almeida transcende-se em “Pensar-te” sem pensar na força do pensamento e da palavra aliada ao sentir!
“Posso não ter a vida que quero, mas quero muito à vida que tenho!”
Diz num dos seus tantos pensamentos. E de imediato a minha Alma se transporta a uma imensa figura que muito admiro e venero:
“Não sei se fui eu quem viveu a vida se foi a vida que me viveu a mim ...”
Amália Rodrigues num dos seus tantos momentos de solidão...
E Mel arrisca, dizendo:
“Nada sou … e tudo me parece tão capaz de o ser!”
De imediato me vem ao Espírito outra grande figura, desta vez, do pensamento e da poesia:
“Não sou nada! Nunca serei nada! Não posso querer ser nada! À parte isso, trago em mim todos os sonhos do mundo ...”
Fernando Pessoa no auge da sua poética interrogação.
Mas Mel completa ainda:
“Frágil é a voz que não grita na inquietude das madrugadas em poeiras e cinzas escritas por gestos feitos de nada!”
E o nada sendo nada é tudo para Mel. Porque afinal, quem não tem nada e aceita que o tem passa a ter em si toda a força do Universo. Fica um espaço, uma margem, um intervalo entre si e a vida para que a vida se manifeste. Para que seja Ela (a Vida) a dizer como e o que se deve viver. Não fazer planos para a vida para não estragar os planos que a vida tem para nós, dizia Agostinho da Silva na implacabilidade da sua sabedoria. E é aí que se é verdadeira e genuinamente livre. Quando se aceita o que a vida pretende de cada um de nós! No entanto, Mel só faz um pedido:
“Não me desafies a Alma, por favor, jamais saberei viver com saudades de mim!”
Mas também:
“Não somos infelizes quando perdemos a sombra de alguém … mas quando perdemos a nossa própria Luz!”
Intenso, profundo e poderoso. À boa maneira do imenso magnetismo de um pensar unido ao coração.
“Gostava de viver sem medo … mas sem medo eu não sei se existo ...”
Afirma Mel.
Por sua vez, Amália Rodrigues, num dos seus tantos fados - Medo - canta:
“(...) o medo mora comigo … mas só o medo, mas só o medo ...”
E no prefácio da obra, Luís Filipe Sanina afirma:
“Mel Almeida, impugna que a morte não acontece quando morremos. A existência humana perpetua-se para além do viver, na intensidade das palavras profetizadas com verdade, força e sabedoria, como chama-viva que mesmo em cinzas é movimento sem no entanto nunca se extinguir.”
E Mel, na sua profunda interacção com a vida em direcção à construção de um destino mais consciente, responde-lhe:
“... são minhas estas dores de amor, com elas me conforto, são dores de uma flor de lotus que de nada valem aos mortos porque eles já não podem amar!”
Em “Pensar-te”, Mel Almeida, apresenta-nos o seu lado poético-filosofico contemporâneo, de modo, a nos mostrar o caminho de quem, como ela, tenta encontrar respostas a questões que antecedem a própria Humanidade, e que, desde sempre pairam no Espírito do Ser Humano. Mel, traz nos seus versos a eterna busca de Pessoa, o lastro doloroso de Florbela, o intenso trautear de Cecilia Meirelles, o Fado de Amália. Encontro, página a página, no seu livro, o lirismo solitário da Callas, os graves de Pavarotti, o ultraromantismo de Castilho, Soares de Passos, Camilo e a melancolia de Cesário. Mas a esperança, essa, não me lembra ninguém, além da própria Amélia, a doce Mel que se nos revela “despida” de pretensões em “Pensar-te”!
Muito me apraz ser seu amigo e consigo partilhar muito do seu Ser na imensa fonte poética que lhe jorra da Alma e consome o Espírito, sem nunca lhe “gastar” o coração, e nesse, cabemos todos e mais ...
Saibam os seus leitores entende-la e recebe-la como ela se nos dá. Despojada e obstinadamente sincera...
Bem haja Amélia,
em Deus
Ricardo Maria Louro
- Évora -
Ricardo Maria Louro