"...entre os silêncios dos olhos, Alexandre, sentado entre as raízes de uma velha nogueira, entrava no mundo sagrado de Cervo Branco, guardador da Floresta Sagrada, do mundo ancestral, da magia antiga que ainda povoava as zonas mais remotas do bosque. Estava entre o limbo dos vivos e a noite eterna dos mortos, viajava entre a centelha divina e o metal fundido que carregava ao peito."
...era tarde, tinha sentido, dentro de si, o velho chamamento da Floresta. Colocou sobre os ombros o velho capuz dos conventículos e saiu de casa. Embrenhou-se por entre a ramagem do bosque, seguindo a melodia que lhe ecoava nos ouvidos. Era um som de flauta calmo, sereno, em tons de choro, mas que o chamava, como só ele o ouvisse, como só o seu interior o perscrutasse, o sentisse. Estava a anoitecer, era tempo Outonal, as folhas começavam a ficar com tons dourados, mexendo-se ao sabor dos ventos, dando um ar de ouro vivo à floresta. Caminhou, andou durante algumas horas, seguiu o som, seguiu o instinto que o levava a sair de casa e a viajar dentro de um mundo que muitos poucos teriam coragem de seguir. A floresta cada vez mais se adensava, os tons dourados davam lugar a cores mais negras, mais escuras, os galhos das árvores fomentavam figuras humanas, o vento era frio, uivava, como se estivesse a vir de dentro do lobo negro da noite dos tempos. Alexandre sabia que nada disto era real, percebia que estava perto do reino mágico dos Elementais. Escurecia a passos largos, sabia que se pernoitasse ali iria entrar no mundo das alucinações, ia estar no limbo entre os vivos e os mortos. Encontrou uma clareira perto de um riacho. Organizou a pernoita com o que havia ali. Pegou em algumas pedras e formou um círculo que encheu de velhos pedaços de madeira, que existiam espalhados pelo chão. Trazia na algibeira um pedaço de broa de milho a que juntou uma fatia de queijo de ovelha. Acendeu a fogueira, sentou-se, e começou a petiscar. Tinha andado durante algumas horas por terrenos acidentados, estava cansado. Comeu, devagar, sem pensar em nada. O som da flauta há muito que tinha deixado de ouvir, acostumava-se aos uivos dos ventos e ao ranger das árvores. Comeu devagar, levantou-se e foi beber água no ribeiro. A água era pura, cristalina, emanava um aroma doce, talvez porque existiam, no rebordo do ribeiro, flores de jasmim e violetas. Bebeu, devagar, sentiu a água a entrar dentro do seu corpo, sentiu-se a ser invadido por uma sensação de leveza, de sonolência, tendo, aos poucos, começado a sentir algumas alucinações. Levantou-se e foi-se aconchegar ao lado da fogueira. Caiu a noite, o frio entranhava-se nos ossos, Alexandre encolhia-se o mais que podia perto das labaredas, ouvindo estranhos gemidos e vozes que vinham do breu da floresta. Entrou num hipnótico sono, não sabia se estava a dormir ou se estava acordado. Via imagens a passar ao seu lado, figuras mágicas que libertavam pólen de ouro e quando o mesmo caía ao chão, transformava os restos dos galhos velhos em plantas a renascer e florir. Via-se sentado, estava sem se conseguir mexer, ouvia o canto de uma voz, linda, límpida, algo que lhe soava a familiar. Sentia que alguém se aproximava, via um vulto - era uma mulher, tinha a certeza disso, vestia algo encarnado, com uns cabelos de fogo pelos ombros, acompanhada por um lobo branco. Não era um corpo físico, era algo que via, concreto, mas que, ao mesmo tempo, percebia que conseguia se mexer por entre as árvores, trespassando as mesmas e sempre a sorrir, nunca tirando os olhos dele. Era noite cerrada, Alexandre apercebia-se disso, mas onde a figura esbelta passava, raiava um Sol de Outono, como se fosse seguida por algo que lhe fazia emanar luz. Beliscava-se para tentar perceber se estava acordado ou não, sentia dor, mas não tinha a certeza disso. A figura aproximava-se dele, transmitindo-lhe paz e serenidade, mas ao mesmo tempo, conseguia que alguma sensações inferiores lhe povoassem a mente. Não falavam, apenas olhavam um para o outro, viam-se, sentiam-se, tentavam comunicar-se sem ruído, tentavam perceber o que o mundo lhes estava a dizer. Alexandre, num rasgo de impaciência, deixou cair uma lágrima, e depois outra e mais outra. Não continha o que lhe estava a sair do peito, não conseguia controlar a emoção que sentia, percebia, agora, o porquê daquele chamamento para dentro da Floresta Sagrada. Ela olhava para ele, levitando-se um pouco, acenando-lhe com a mão, tentando-lhe transmitir a confiança que ele tanto necessitava. Tal como lhe apareceu também desapareceu. Ficava novamente sozinho. Não se ouvia barulho algum, ate o murmúrio da água do ribeiro se tinha calado. Estava escuro, restavam uma réstia de brasas na fogueira, mas não tinha frio, estava bem. Adormeceu.
O dia começava a raiar. Ouvia, novamente o som da flauta, a floresta estava verdejante, o escuro tinha desaparecido, tal como tinha desaparecido os fluidos negativos que embarcavam em si de tempos a tempos. Desfez o acampamento, colocou as suas pequenas coisas, os seus nadas na algibeira e continuou o caminho. Não sabia para onde ir, mas sabia o caminho a seguir, não sabia o futuro, mas conhecia bem o presente, não percebia o destino, mas tinha a certeza do ar que respirava. Caminhava pela sua vida, pela sua história de vida, pela sua fortuna interna, pela sua forma de ser e de se dar. Lembrava-se de algumas coisas da noite anterior, não muitas, parecia que tinha estado num plano vegetativo em que as imagens ficam distorcidas mas que o som é bem audível. Lembrava-se de uma frase do lobo branco, das poucas coisas que tinha saído daquele animal mágico, uma fala em pronuncia perdida nos tempos e dos tempos dos sagrados guardadores do azevinho primordial.
"lembra-te homem que nada tens, tendo tudo o que precisas!"
continuou o seu caminho entre veredas e árvores frondosas, ia tentar encontra o centro psíquico da Floresta Sagrada, o Círculo onde habitava o Senhor da Vida, onde tentaria perceber a sua existência neste mundo terreno.
O caminho é longo, haja pés para que possa ser percorrido, palmeado, vivido entre medos, alegrias, sorrisos e lágrimas.
O caminho é longo, ele sabe disso, mas nunca desistirá dele...porque ele é a sua vida!
In Diário de um Feiticeiro - Livro das Sombras
(Agosto 2014)
"Quanto maior a armadura, mais frágil é o ser que nela habita!"