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O Homem e as suas circunstâncias

 
Há momentos na vida em que nos vemos envolvidos em estranhas situações... Situações que nunca pensámos criar, onde nunca nos pensámos encontrar. Esta que passo a narrar é uma delas.
Um pequeno incidente que parecendo ligeiro poderia ter dado origem a uma situação verdadeiramente dramática. Foi o que ocorreu. Passo a explicar.

Certo dia, corria o fim de semana como todos os fins de semana, dentro da normalidade, fiz uma ferida nas costas da mão esquerda. Não importa neste momento perceber como aconteceu, mas sim, o que se passou depois. Aparentemente um golpe à superfície, simples e ligeiro. Sangrou um pouco e parou. Doeu de imediato e passou. Deitei-me, adormeci e ao acordar, parecia que tinha uma mão de borracha, negra e inchada. Quase enlouqueci de espanto. Fui de imediato às urgências de um hospital. Entrei com uma pulseira amarela urgente. Fiz exames, analises, Raio X e eco. Antes de sair o resultado dos exames uma das médicas resolveu chamar-me. Não sei se para me avisar, pôr apenas ocorrente, acalmar ou aterrorizar!

"- Sabe Ricardo, dizia ela, não sei bem o que se passa internamente com a sua mão, aguardo ainda o resultado dos exames, mas exteriormente não pode estar pior. Este tipo de situação no seu limite pode levar à extracção da mão!"

Eu, na minha ingenuidade, húmida de perplexidade, ainda me pus a pensar, não querendo entender o óbvio.

Espere lá doutora! Mão quer dizer mão, por isso, refere-se à minha mão! E extracção quer dizer o quê?!

"- Cortar, tirar, amputar, essas coisas!" Respondeu em tom severo.

Há bom! Folgo em saber. Disse eu...

Ia morrendo com a noticia! E voltei à sala de espera do hospital com aquela fantástica novidade a impregenar-me o Espírito. E durante quase 2 horas aguardei o resultado dos exames. Quem lê este texto deve estar a pensar, a médica enlouqueceu, ou, coitado do rapaz, ou ainda, que horror, a médica devia ser processada! Nada disso. Não sejamos tão "normais" nas nossas considerações, o comum dos mortais pensa e diz isso. Aqui não queremos normalidade, queremos mesmo anormalidade e anormalidade quer dizer fora da norma. Vamos pensar fora da norma.
Afinal, o que é que me podia acontecer de pior, ali, sozinho, sem ninguém por perto, além de me pensar e visualizar sem mão?! Nada! E foi o que aconteceu! Foi um trabalho interior difícil, passei por varias fases emocionais, por vários estágios psíquicos, por vários sentimentos contraditórios, mas ao fim de 2 horas aceitei perder a mão. E quando já tinha aceite, ouvi chamar por todo o hospital, "Sr. Ricardo Maria Louro à sala de cirurgia por favor!"
E lá foi o bom do Ricardo p'ro matadouro. Como é que me iriam tirar a mão, questionava-me eu, com uma serra, com uma faca, com tesouras??? Enfim, fosse como fosse só queria que fosse depressa para ir para casa ainda mais depressa. Quando entrei, estavam 2 cirurgiões plásticos à minha espera.
Como bom alentejano que sou, pensei de imediato: Porra que isto vai ser dificil! São logo dois ...

"- Olhe Ricardo, disse um deles, afinal o hematoma está contido apenas num local e está isolado do resto da mão. A infecção não se espalhou. A sua mão está salva!"

Ai sim?! Disse eu. Bolas! Tanto trabalho interior para nada! Pensei, repensei, chorei, moí e remoí o assunto e agora você diz-me com esse desplante que não me vão tirar a mão?! Vocês são incriveis! Disse eu...

Os médicos ficaram seráficos, perplexos! Tal como eu fiquei quando a médica sem saber o resultado dos exames me deu aquela estimulante novidade por noticia. Foi essa a cara que eu fiz! De seráfico e perplexo...

Mas então o que sugerem fazer? Disse eu.
"- Vamos fazer-lhe uma raspagem ..."
E dói? Perguntei eu.
"Muito!" Disseram eles.
Mais do que cortar a mão? Disse eu.
"-Sim, com certeza! A anestesia é diferente." Responderam.
E tem mesmo que ser? Perguntei novamente.
"- Só se quiser que lhe cortemos a mão!" Disseram eles.
Mas afinal querem cortar-me a mão ou não?! Perguntei outra vez.
"- Oiça, disseram eles, você é que decide..."
Ai sim?! Disse eu. Mas há pouco a vossa colega não estava muito disposta a dar-me opções, parecia que a queria cortar de uma vez! Mas está bem, disse eu, façam lá a raspagem. Afinal a mão até me faz falta!

Prefiro não descrever o que aconteceu em seguida. Só posso dizer que terá sido um dos piores momentos que já vivi até hoje. E quando aquele tormento acabou, chamei um taxi. As dores eram imensas. Chovia desalmadamente. Precisava da medicação receitada pelo médico. O taxi levou-me à avenida 24 de Julho a uma farmácia que está aberta 24 horas por dia. Quando chegámos, reparei que a fila dava a volta à avenida e que chovia torrencialmente, não quis acreditar nem esperar. Estava exausto. Pedi ao senhor que me deixasse em casa, no chiado. Quando cheguei, cai na cama e adormeci. Acordei às 2 da manhã a sentir "facadas" na mão. O efeito da anestesia tinha passado e não tinha medicamentos para as dores. Estava feito! Gritei, pulei, chorei, cantei, escrevi versos, fiz tudo e mais alguma coisa que se possa imaginar mas as dores pareciam engolir-me o Espírito e devorar-me a Alma.
Resolvi então racionalizar a situação. Lembrei-me que Carl Yung, psiquiatra, discípulo de Freud dizia numa das suas obras que a dor não está contida no local que dói mas no cérebro. No meu caso, percebi que a mão enviava a informação para o cérebro e o cérebro comunicava-me a dor. E questionei-me:

E se eu calasse o cérebro?! Se controlasse a mente?! ...

Como ainda não sou evoluído o suficiente para fazê-lo com técnicas orientais de meditação fui um pouco mais pragmático e "taurino" nesta emergência.

Já sei! Vou embebedar a mente! Não a mim, mas a ela! Mas já que o vou fazer, faço-o em grande estilo...

Peguei num cd da Maria Callas, coloquei-o a tocar bem alto na faixa do casta Diva, tomei 3 copos de whisky sem gelo e cai redondo na cama como um morto... tiro e queda!

Então, o quadro era este:

Eu, no quarto, de mão cortada, bêbado, caído na ponta da cama, com uma garrafa de whisky à cabeceira e a Maria Callas a cantar o Casta Diva aos gritos pela casa...

As notas agudas da Callas e os 3 whisk's atenuaram a minha dor, calaram a minha mente e adormeceram o meu Espírito naquela noite de trevas e nevoeiro em que sem querer me vi envolvido numa insólita e bizarra situação. No outro dia, acordei de ressaca. Doía-me mais a cabeça do que a mão. Óbvio! Aliás, nem me lembrava da mão, só me lembrava da cabeça ...

Quem quer que entrasse no quarto naquele momento, sem saber o que me tinha acontecido, jamais imaginaria que eu teria passado por todas as dificuldades que passei e ainda pensaria que eu era louco, alcoólico e que talvez, pela mão ligada, até me tivesse tentado suicidar.

Realmente as coisas são de uma forma, parecem outra e ainda são de outra na realidade! "Eis o Homem ..." e as suas circunstâncias...


Ricardo Louro
No Chiado

A intenção e o titulo deste texto baseam-se numa situação real observada a partir da corrente filosofica do filosofo Espanhol Ortega y Gasset. "Eu sou eu e a minha circunstancia! E se me quero salvar a mim tenho que salvar a minha circunstancia..." obviamente que o caminho è o da aceitaçao. Ninguem resolve aquilo que nao aceita. Afirmo eu!


Ricardo Maria Louro

 
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Ricky
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