Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que
os dias se tornam mornos,
batem assustadas nas minhas janelas
e ouço as distâncias dizerem coisas
que não sei suportar sem um amigo,
que não posso amar sem uma irmã.
E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.
Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anônimos.
Triunfamos sobre o que é Pequeno
e o próprio êxito torna-nos pequenos.
Nem o Eterno nem o Extraordinário
serão derrotados por nós.
Este é o anjo que aparecia
aos lutadores do Antigo Testamento:
quando os nervos dos seus adversários
na luta ficavam tensos e como metal,
lhes sentia debaixo dos seus dedos
como cordas tocando profundas melodias.
Aquele que venceu este anjo
que tantas vezes renunciou à luta.
esse caminha ereto, justificado,
e sai grande daquela dura mão
que, como se o esculpisse,
se estreitou à sua volta.
Os triunfos já não o tentam.
O seu crescimento é:
ser o profundamente vencido
por algo cada vez maior.
Rainer Maria Rilke (1875-1926), poeta alemão, in "O Livro das Imagens". Tradução de Maria João Costa Pereira
Imagem: Carl Spitzweg (1808-1885), Sennerin und Mönch.