Crónicas : 

CAMINHANDO COM MEUS VELHINHOS

 
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(Esta é a minha velhinha preferida, Laura Martin)

CAMINHANDO COM MEUS VELHINHOS


Um dia chegaremos lá. E eu espero estar com uma cabeça boa, sorrindo para a vida, e para todos em minha volta.
Não quero tristezas, nem recordações que não valham a pena. Quero olhar para trás sem arrependimentos, e olhar tudo de bom que eu fiz.
Trabalhar com esses velhinhos tem me feito tão bem! Quando entro naquele lugar, me sinto movida pelo meu coração. Algo aqui dentro de mim se move. Muda. Recicla.
Meus olhos se deitam em tudo de uma forma completamente diferente. Nao sei explicar. Mas um grande sentimento se apossa de meu coração. Passo a sentir mais, de uma forma absoluta.

Ontem foi a festinha de aniversario do mês. Gosto tanto desse dia, porque a maioria dos velhinhos que não saem do quarto, vão para o restaurante. Vem um pianista tocar musicas, e de repente todos viram um pouco crianças... a gente nota o pé batendo no chão, e o olhar sonhador, com alguma lembrança do passado.
Comem bolo como crianças, seguram o copo de suco como minha filha segurava quando era pequena. Como se o mundo inteiro se resumisse naquele pedaço de bolo, e aquele suco. Alguns dormem na mesa, pelos remédios, ou mesmo pelo cansaço. Mas querem participar.

Há um homem que é cego e é impressionante como ele dá uma injeção de otimismo em todos. Sempre sorrindo, de bom humor, de bem com a vida, como se enxergasse tudo colorido. Nas festas ele canta, ri, bate palmas. Ao lado dele, sempre de camisa xadrez, o companheiro dele, Mike, jantam sempre juntos, fumam juntos lá fora depois do jantar.
Adoro servir a mesa dele! Tenho sempre que dizer a ele o que tem no prato, e independente do que seja, ele sempre acha bom, e agradece. Mesmo sem enxergar o mundo, este homem consegue ser grato.

No jantar, gosto de dar comida para o Howard. Ele é bem velhinho mesmo, ele senta e dorme. Entao o acordo, e ele diz:"Ja é de manha? " Falo para ele que é o horario do jantar. Vou dando aquelas colheradinhas de comida, e ele de repente está dormindo de novo...e assim vai o jantar...

Mas uma velhinha que tenho verdadeira paixão é a Laura. Tem algo naquela velhinha que nao sei explicar, mas me puxa para ela. Sempre arrumadinha, com o chapéu combinando com a roupa. E tem uma voz muito dela. Um jeito de se expressar muito especial.
Eu chego e ela diz:"Hi! What do you know?" Uma expressao que os americanos usam para dizer:"Ola! conte as novidades!".

Todos eles tem direito a uma sobremesa. Ela esconde a dela em baixo da mesa, e me chama:"Maria, voce esqueceu da minha sobremesa" (risos - safadinha!).

Gosto de ir no quarto dela. Sento com em sua cama, e ela conversa. Ela escuta pouquissimo, levo meu caderno, escrevo, e ela responde. E assim fico conversando em seu quarto. Dessa ultima vez ela contou suas viagens com seu marido, e falou das borboletas. A Laura adora borboletas. Tem um quadro com uma borboleta colorida, em cima de sua cama. Perguntei porque. Ela disse que gostava do colorido delas, e do modo que elas voavam livres. Falou-me das borboletas no campo. E eu parecia enxergar a beleza da descrição.

Ela sempre me conta as coisas de um modo detalhado, muito proprio dela. Tenho um carinho imenso por essa velhinha.

Em cada lugar que vou ali, tem uma historia.

Comove-me sobremaneira um homem que vem todas as tardes sentar com sua mulher para jantar. Ela teve derrame. Ele senta pacienciosamente com ela, e dá a comida na boca. Quando coloco a comida na mesa, ele diz para ela:"Hummm que delicia, veja!". Ela olha como se seu olhar nao estivesse ali.... e ele sempre com aquela paciencia. Mostrando-se alegre. Mas muitas vezes eu capto seu olhar distante na mesa, olhando por um momento para o vazio.
Um dia desses eu vi a fotografia deles quando jovens. Está pendurada no corredor onde tem os quartos. Um casal bonito, alegre, sorrindo abraçados.
Então por um instante a gente tem um rapido sentido da vida. Das mudanças.

Gosto muito de um velhinho chamado Norman. Ele sempre me conta historias interessantes de vida. Outro dia estava contando o quanto gostava de cozinhar para os filhos. E queria muito que eles comessem espinafre. Entao inventava receitas diferentes. Fala de receitas, de guerra, da familia, dos netos, dos filhos. Tem uma memoria invejavel! Muito lucido, nao se esquece de pequenos detalhes. Gosta de falar da Guerra em que esteve. Dos amigos que perdeu. Das medalhas que ganhou. Quando saio de seu quarto, levo sempre comigo papeis que ele me da, coisas antigas que ele guarda.

Visito tambem uma mulher que perdeu o marido com derrame cerebral. A semana passada eu havia ido visitá-la e encontrei sua cama arrumadinha, e ninguem no quarto. Levei um susto, achando que havia acontecido algo com ela. Mas ela havia ido ao funeral de sua irma que havia morrido. Nessa semana entao fui visitá-la e me preparei interiormente para ouvi-la, e dizer umas palavras consoladoras. No entanto ela estava bem. Vejo que Deus nos dá uma compreensao acima dos limites nessa idade. Tudo parece uma decorrencia normal da vida (e é !) mas que é aceita de um modo mais facil e simples do que quando somos jovens.

Eu me emociono com a ingenuidade dela, quando me conta que ela o conheceu com 16 anos, foi seu primeiro e unico namorado. E ela descreve quando o viu pela primeira vez, ela estava numa estação de trem, e que ele veio falar com ela. Diz que estava com um vestido branco comprido. Seus olhos sempre brilham com essa lembrança, e ela sempre repete essa historia como se fosse a primeira vez que estivesse me contando. E o engraçado é que toda vez que eu a escuto, parece mesmo a primeira vez, pelo brilho de seus olhos, pela empolgação meiga de suas palavras.

Sinto-me util. Sinto-me necessaria naquele mundo onde muitos estacionaram. Sinto-me movendo, e de uma certa forma, trazendo alegria a eles. Brinco muito. Sorrio muito. Exercito minha paciencia. E sempre agradeço por Deus ter me colocado naquele lugar e me fazer enxergar coisas que nunca enxerguei.

Quando saio de lá, parece que meu coracao está explodindo de alegria. Uma sensacao tao boa de dar amor, e a melhor: receber tanto amor desses velhinhos.

*Mary Fioratti*





 
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MaryFioratti
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 03/10/2014 03:45  Atualizado: 03/10/2014 03:45
 Re: CAMINHANDO COM MEUS VELHINHOS
sei como é essa sensação,de dar e receber tanto de pessoas que são mesmo maravilhosas, realmente eles tem muito q oferecer n só de experiência, mas da forma generosa,serena de dar amor,atenção e aqueles pedaços especiais de si mesmos,obrigado por essa leitura tão valiosa,alivia um pouco das barbaridades do dia a dia q tenta trazer a incredulidade pra dentro do coração, senti sua alegria,senti sua ternura, vc realmente fala o q diz e diz o q fala,acho isso muito,muito legal.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 03/10/2014 13:12  Atualizado: 03/10/2014 13:12
 Re: CAMINHANDO COM MEUS VELHINHOS
Em nossas vidas o caminho que andamos foram essas pessoas quem os fizeram bravamente, com sua forças e bravuras.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 03/10/2014 20:44  Atualizado: 03/10/2014 20:44
 Re: CAMINHANDO COM MEUS VELHINHOS
Que belo texto Mary para além de envolvente enaltecendo assim a uma geração mais velha que "nós"...é preciso que saibamos respeitar, valorizar os(as) velhinhos(as), pois para lá "caminhamos"...haja sempre corações nobres assim como o seu.

Bem conseguido e para refletir Mary.

bj

Enviado por Tópico
GELComposicoes
Publicado: 04/10/2014 20:58  Atualizado: 04/10/2014 20:58
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 Re: CAMINHANDO COM MEUS VELHINHOS
Que bom!!!
Com certeza, todo esse carinho, todo esse amor que você dá a eles, Deus,
de alguma forma, lhe dará em dobro...
Admiro isso! O mundo precisa de mais pessoas como você!
Gostei de ter conhecido um pouco da história dessa turminha tão especial.
Deixo um grande abraço para cada um.

Abração.