Os franceses que acreditam em Deus devem, certamente, agradecer-lhe por terem nascido no mesmo país que deu ao mundo homens como Voltaire e Rousseau.
Ambos, mais que gênios, tornaram-se os próprios sistemas filosóficos que criaram. Em Voltaire, a Razão; em Rousseau, o Sentimento; e na soma de seus privilegiados intelectos, a visão panorâmica do homem em toda a sua complexa grandeza.
E, justamente por conta da excepcionalidade de cada um, alguns estudiosos (como esse modesto escrevinhador) ousam criticar-lhes em aspectos específicos, talvez pelo mau costume de esperar de gênios como eles, a perfeição absoluta.
Assim sendo, se alguma censura pode ser feita ao filósofo Voltaire, talvez seja a de ter tratado com certo descuido as questões políticas, em virtude de sua imersão quase absoluta na luta contra o Clero e contra a supersticiosa ignorância que ele promove.
Aliás, o próprio Voltaire assumia essa falha, proveniente de seu, também assumido, desapego às questões de Estado, de Governo. Em suas palavras:
“A política não é do meu feitio; sempre me limitei a fazer o máximo de meus modestos esforços para tornar os homens menos tolos e mais honrados. (...) Estou cansado de toda essa gente que governa Estados do recesso de seus sótãos. (...) Esses legisladores que governam o mundo a dois centavos a pagina; (...) incapazes de governar suas esposas ou suas casas, sentem grande prazer em regular o universo. (...) É impossível resolver essas questões (as políticas) com fórmulas simples e genéricas, ou dividindo todas as pessoas em bobos e escravos de um lado, e nós do outro. (...) A verdade não tem o nome de um Partido”.
Contudo, ainda que lhe faltasse um apetite mais aguçado para o jogo político, ele tinha bem definidas as suas posições sobre o tema. As principais podem ser elencadas da seguinte forma:
1 - Inclinação para certo Conservadorismo econômico, com a crença no poder da propriedade como indutor de comportamentos mais ordeiros, cuidadosos e produtivos.
2 - Indiferença em relação à suposta melhor forma de Governo, com ligeira preferência pela República, já que para ele “os homens são indignos de governarem a si mesmos”. A posição de Platão a esse respeito – o Governo composto apenas por sábios – era o seu ideal, embora ele reconhecesse a sua impossibilidade (É claro que se ele assistisse ao triste espetáculo atual, a sua posição seria muito mais severa nesse quesito.).
3 - Indiferença a conceitos sem amparo natural ou racional, tal como: patriotismo, nacionalidades, ufanismo etc. Para ele, o patriotismo só significa que “o indivíduo odeia todos os países, exceto o seu”. Por ter tido a oportunidade de viajar muito, ou por ter sido obrigado a exílios, ele não se prendia às ideias rasteiras de glorificação das “causas nacionais” e, por isso, permitia-se admirar a literatura inglesa, a pintura italiana, a Filosofia hindu e a várias outras manifestações do gênio humano, pouco lhe importando donde proviesse. E isso, mesmo que aquela nação estivesse em guerra contra a sua França natal. Aliás, a seu ver, o fato das mesmas guerrearem as nivelava por baixo e justamente por isso nenhuma delas merecia o seu apreço. Apenas as suas Culturas é que recebiam sua aprovação. Em suas palavras:
“Enquanto as nações tiverem por hábito fazer a guerra, não há muito que escolher entre elas. (...) A guerra é o maior de todos os crimes; no entanto, não há agressor que não disfarce seu crime com pretexto da justiça. (...) É proibido matar; portanto todos os assassinos são punidos, a menos que matem em grande quantidade e ao som de trombetas”.
4 - Desaprovação de rebeliões populares, por desconfiar abertamente do povo enquanto agente político. A seu ver, a maioria dos homens está sempre tão ocupada que não consegue enxergar a “Verdade” até que uma mudança a transforme em erro. A história intelectual da maioria dos homens consiste apenas da substituição de um mito por outro.
5 - Discordância da tese que propunha serem todos os homens iguais, no tocante à posse de bens materiais e poderes; todavia, encampava a doutrina dos ingleses que afirmava que todos os cidadãos podem não ser igualmente fortes, ricos e poderosos, mas todos podem ser igualmente livres.
Desse modo e de acordo com essas suas convicções, o filósofo vivia sem atentar para os fatos do mundo exterior. Não percebia, por exemplo, a ascensão que vinha obtendo o filósofo Jean Jacques Rousseau, tanto no meio intelectual, quanto no seio do povo, cativado por seus romances adocicados e otimistas.
Não se dava conta de que o domínio do Racionalismo, que até aquela quadra havia dominado a cena intelectual, estava ruindo e que uma larga fatia do Pensamento acolhia o Sentimentalismo de Rousseau.
Não percebia que a complexa alma francesa, dividia-se entre o que ele representava e o Sistema proposto pelo genebrino, cujos textos emocionavam Paris e o resto do mundo.
Não atinava, em suma, que entre Voltaire e Rousseau desenhava-se o velho embate entre a Razão e a Emoção. Nele, o apego à racionalidade e ao conservadorismo; no outro, o voluntarismo, o ímpeto e o destemor pela revolução nos costumes sociais e políticos.
Porém, em determinado momento não pôde fugir da evidência do confronto e se as diferenças entre ambos não resultaram em declarada hostilidade, também não serviram para aproximá-los.
É certo que os dois mantiveram um tratamento civilizado em relação ao oponente, bem como mantiveram o respeito pelo direito de cada qual ter e expor as suas ideias; mas nem o fato de Voltaire ter oferecido o abrigo de “Les Delices” a um perseguido Rousseau, fez com que surgisse a amizade entre eles. A profunda divergência nas concepções de cada qual, não permitia qualquer composição.
Para Voltaire os argumentos de Rousseau contra a civilização não passavam de um absurdo infantil, já que, em seu ponto de vista, o homem vivia muito melhor agora, na civilização, do que quando estava no “Estado da Natureza”, sob o jugo da implacável “Lei do mais forte”. Para ele, o controle exercido pela sociedade, ainda que falho, permitia atenuar a rapinagem e ferocidade naturais do homem, impedindo o massacre dos mais frágeis fisicamente. Ao contrário de seu oponente, ele não considerava “O homem bom por natureza, tornando-se degenerado apenas por culpa da sociedade”.
Todavia, apesar das divergências com Rousseau e com as novas tendências derivadas de seu sistema, Voltaire concordava que as coisas não estavam indo bem em termos governamentais, eivado de sinecuras, corrupções, perseguições e outros males que proliferam na corrompidas sociedades governadas por tiranos (Recorte do autor – observe o leitor (a) a atualidade desse último parágrafo. A similaridade com o que ocorre em nossos dias, bem mostra o quão pouco se evoluiu nesse quesito).
Uma rara convergência entre ambos que só o espírito democrático da “Cidade Luz” poderia abrigar. De um lado, Voltaire e seus inúmeros seguidores, crentes que seria possível romper com o círculo vicioso e nefasto da Política, de maneira racional, gradual e pacifica; e no outro lado, Rousseau e seus adeptos, confiantes que o deletério círculo só poderia ser rompido com medidas drásticas, radicais, passionais.
E talvez por essa largueza de espírito, é que Voltaire nunca deixou de amar Paris e de se encantar com as suas características redentoras. Ali, encontrava-se o aprisco perfeito para a exuberância de sua inteligência, a qual, mesmo com a sombra das ideias adversárias, não sofreu qualquer déficit de reconhecimento e de consideração. Afinal, na “Cidade Luz” todas as “luzes” convivem, ainda que em castiçais opostos.
No próximo capítulo faremos as considerações finais sobre o Iluminismo e sobre a sua face mais exata, Voltaire.
Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.