Antes de tudo, será preciso fazer o seguinte esclarecimento:
Ateu não é quem desacredita que Deus exista.
Ateu é o indivíduo que pode, ou não, acreditar em um Ser Supremo, desde que o mesmo seja totalmente desvinculado de qualquer viés religioso.
Isso colocado pode-se, então, dizer, que Voltaire não era ateu, já que ele rejeitava o Materialismo, a descrença absoluta e até o Panteísmo spinoziano por considerá-lo “excessivamente ateu” (sic). Em uma missiva a Diderot ele diz que:
“Confesso que não sou, em absoluto, da mesma opinião que Saunderson (Nicholas, matemático, 1682-1739, Grã Bretanha), que nega um Deus porque nasceu cego. Talvez eu esteja errado; mas no lugar dele eu reconheceria uma grande Inteligência que me deu tantos substitutos da visão; e percebendo, ao meditar, as maravilhosas relações entre todas as coisas, eu deveria ter desconfiado que existe um artífice infinitamente capaz. Se é muito presunçoso adivinhar o que Ele é e porque Ele fez tudo o que existe, parece-me também muito presunçoso negar que Ele existe”.
Peço a atenção do leitor (a) para o último parágrafo da missiva, no qual ele expõe a sua crença e a sua censura à presunção daqueles que se imaginam capazes de compreender e, pior, explicar a divindade. Não lhes basta sentir a Sua presença; tentam mostrar-se “íntimos” Dele, para que tal proximidade garanta-lhes privilégios.
Voltado ao filósofo, vemos que ele voltou a externar a sua crença, ao Barão Holbach, observando que o próprio título da obra do Barão, “Sistema da Natureza”, já pressupõe a existência de uma Inteligência organizadora.
Todavia, fiel às suas convicções, ele nunca deixou de negar peremptoriamente a ocorrência de milagres e símiles, bem como, qualquer suposto poder sobrenatural da oração, da prece, das novenas, dos sacrifícios etc.
Embasou-se na tese de Spinoza para escorar seus argumentos e tanto quanto o genial holandês, afirmava que Deus se expressa nas Leis Naturais e não em suas inexistentes exceções.
Igualmente negava qualquer veracidade e validade ao conceito de “Livre Arbítrio”, pois julgava ser o conjunto das circunstâncias o que produz as ações e os pensamentos. Em relação à “Alma”, ele se escusava de fazer afirmativas sobre a sua natureza e o seu propósito, mas acreditava na necessidade de que a mesma fosse imortal para servir como “freio” aos instintos mais deletérios do homem.
E quando a maturidade chegou, a sua convicção se consolidou definitivamente, pois, em sua ótica, apenas a expectativa de um prêmio ou de um castigo por toda a eternidade é que seria eficiente para conter os abusos.
Essa guinada rumo a uma maior tolerância com a crença religiosa, chegada com o avanço da idade, talvez tenha sido deflagrada pela própria sensação de senilidade ou pelo fim da ilusão de que os homens pudessem progredir intelectual e eticamente.
Porém independentemente do motivo e por conta dessa constatação, ele passou a afirmar que a Sociedade só poderia prescindir da “presença e da ameaça de Deus” se fosse composta apenas por Filósofos (no sentido de amigos do “Verdadeiro Saber”) libertados da escravidão dos desejos, que é a origem de todos os males sociais. Em suas palavras:
“Se Deus não existisse, seria necessário inventá-lo”.
E junto com a mudança acima, também se lhe modificou a perspectiva sobre o objetivo precípuo da Vida, que deixou de ser “a busca pela Verdade”, para se tornar “a busca pela Felicidade”.
Com isso, de certo modo, ele fez uma antecipação ao ideário que sucedeu ao Racionalismo Iluminista e que propunha a preponderância dos Sentimentos, das Intuições, sobre a Razão, conforme as teses de Rousseau, Kant e outros.
E nesse processo de câmbio de opiniões, ele avançou até ao ponto de ver com certa condescendência o próprio Teismo1, argumentando que o Mal causado pela religião provinha mais da superstição que nela se embute, de que da adoração pura de algum Ser.
E essa diferenciação entre a superstição (ou a liturgia que foi inventada pelo Clero) e a “Religião Pura” tornou-se tão importante para ele, que culminou na fundação de sua própria Igreja; a qual, segundo ele, seria a única “que foi erigida para Deus”. Nela, sem qualquer ritual, liturgia, cerimônia, fórmula etc., ele e seus adeptos podiam praticar a crença segundo os seus meios e modos, sem a pressão de seguir ritos que podem ter conteúdo para quem os inventa, mas que são vazios para todos os outros. E a concessão a esse tipo particular de “teísmo”, mereceu o verbete “Teísta” no Dicionário Filosófico que diz:
“O Teísta é um homem firmemente convencido da existência de um Ser supremo tão bom quanto poderoso, que formou todas as coisas (...); que castiga, sem crueldade, todos os crimes, e recompensa com bondade todos os atos virtuosos. (...) Unido, nesse principio, com o resto do universo, ele não adere a nenhuma das Seitas que, todas, se contradizem mutuamente. Sua religião é a mais antiga e a mais disseminada; porque a simples adoração de um Deus precedeu todos os sistemas do mundo. Ele fala uma língua que todos os povos compreendem, embora não se compreendam entre eles. Ele tem irmãos de Pequim a Caiena, e considera todos os sábios seus companheiros. Acredita que religião não consiste nem nas opiniões de uma Metafísica ininteligível, nem em vãs ostentações, mas na adoração e na justiça. Fazer o bem á a sua adoração, submeter-se a Deus é o seu credo”.
Uma grande concessão, sem dúvida, porém, mesmo tendo abrandado algumas de suas posições, Voltaire ainda continuou a ser considerado o antípoda de Rousseau, como veremos no próximo capítulo.
Nota do Autor1 – Teísmo – termo originado do grego “Theo”, deus. Resumidamente, é a crença em um Ser modelado pela doutrina de alguma religião.
Produção e divulgação de Pat Tavares, lettré, l´art et la culture, assessoria de Imprensa e de Comunicação com o Público. Rio de Janeiro, Primavera de 2014.