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GRAVADA NO TEMPO

 
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Ela sonhava fazer parte da paisagem...

- Menina, não desce esses degraus, vai que escorrega? –

A voz vinha da janela logo atrás. Com irritação de criança batia o pé mas, obediente, logo sentava no primeiro degrau da escada escavada na ribanceira. Com o cotovelo na coxa e a mão no queixo, resignada, olhava o barquinho avariado balançando na beira do rio. Tempos atrás ele havia sido todo azul, mas o casco descascado só mostrava resquício da cor esmaecida.
Sentia ânsia maluca de descer as escadas e ao mesmo tempo colher florezinhas... A vontade de descer com as mãos cheias até adentrar no barco e libertá-lo daquela prisão e depois fugir com ele descendo o rio; jogaria flores n' água, fazendo de conta que alimentava peixinhos.
A ribanceira era coberta por arbustos com flores brancas e miúdas que se entremeavam no capinzal. Havia sido desmatado estreito espaço para que fosse escavada a escada de chão. Lá embaixo, a alguns metros do rio, havia uma casinha de madeira sem pintura e telhado de palha. Era cercada por coqueiros e, no fundo do pomar, sobressaia uma frondosa jaqueira e mais para trás, um lindo açaizal, cujas palmas tremeluziam ao vento. A palafita pertencia ao dono do barquinho que dançava amarrado no pequeno trapiche - um tablado de madeira com estacas afincadas dentro do rio.
Que doído era querer fazer parte daquela tela viva e não poder, pois um olhar lançado da janela era extremamente vigilante. Os pezinhos batiam no degrau de terra, agitados, por conta daquele desejo de criança sapeca, enquanto via o rio correndo lá embaixo e alguns barquinhos zarpando com a água beirando os conveses... Barquinhos minúsculos com seus motores fazendo ‘puc-puc’ e que seguiam até sumirem no horizonte. Os olhos os acompanhavam até serem engolidos pelo rio -era assim que pensava; que quando os barquinhos se apagavam na distância, era porque eles haviam emborcado n' água. Sempre que isso acontecia, retornava a vontade de descer a ribanceira e fazer parte daquela paisagem... Do trapiche com o barquinho amarrado, da casinha de palha com as árvores...

- Filha, está na hora de entrar. Quer comer vento é?

Levantava, espanava a sujeira da roupa e corria pra dentro de casa. Depois de tudo, se pendurava na janela e ficava namorando o barquinho balançando no rio dourado de raios de sonhos.


Aquela mania de escrever qualquer coisa que escorrega do pensamento.

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MarySSantos
 
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Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 22/09/2014 20:22  Atualizado: 22/09/2014 20:22
 Re: GRAVADA NO TEMPO
Mary,

Neste degustar de prazer
Em rio que banha a campina
E nessas margens recolher
Esses sonhos, de menina!

Beijo

Enviado por Tópico
Betha Mendonça
Publicado: 23/09/2014 03:26  Atualizado: 23/09/2014 03:26
Colaborador
Usuário desde: 30/06/2009
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Mensagens: 6700
 Re: GRAVADA NO TEMPO
Creio ser a primeira prosa
que leio escrita por ti.
Muito boa!Imagens que vivem
nos olhos do leitor.
Paisagem amazônica,
tão querida e conhecida por mim.
Os barquinhos aqui
dizemos pô-pô-pôs.
Parabéns!
bj

Enviado por Tópico
ManoelDeAlmeida
Publicado: 23/09/2014 11:12  Atualizado: 23/09/2014 11:12
Colaborador
Usuário desde: 30/05/2011
Localidade: Campo Grande/MS - Brasil
Mensagens: 834
 Re: GRAVADA NO TEMPO
Muito bom seu conto; linda essa menina com alma de poeta e que vivi uma relação de "felicidade" com a natureza, o rio e sua casa! Abraço.

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 23/09/2014 12:21  Atualizado: 23/09/2014 12:21
 Re: GRAVADA NO TEMPO
Ótimo Mary, Tenho quase certeza que essa foi uma experiência vivida e narrada por sua alma de poetisa, pelo lirismo usado transformando, quem sabe, um paisagem simples em um sonho dourado de criança.
Gostei muito, muito.

Enviado por Tópico
Jmattos
Publicado: 23/09/2014 21:02  Atualizado: 23/09/2014 21:02
Usuário desde: 03/09/2012
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 Re: GRAVADA NO TEMPO
Mary
Parabéns! Que conto encantador! Beijos!
Janna

Enviado por Tópico
Migueljaco
Publicado: 07/02/2015 13:07  Atualizado: 07/02/2015 13:07
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Usuário desde: 23/06/2011
Localidade: Taubaté SP
Mensagens: 10200
 Re: GRAVADA NO TEMPO
Bom dia Mary, seus versos enredam com primazia toda a inocência de uma criança, que não obstante goza de profunda ousadia, parabéns pelo redundante conto, MJ.

Enviado por Tópico
Álvaro
Publicado: 07/02/2015 15:13  Atualizado: 07/02/2015 15:13
Da casa!
Usuário desde: 02/09/2009
Localidade: Serra Talhada - Pe
Mensagens: 268
 Re: GRAVADA NO TEMPO
Lindo texto, Só uma palavra para descrevê-lo: ENCANTADOR! Parabéns

Enviado por Tópico
visitante
Publicado: 07/02/2015 16:09  Atualizado: 07/02/2015 16:09
 Re: GRAVADA NO TEMPO
Olá Mary!

Amei teu conto... ao ler fui olhando as imagens que descreves com graça e encanto... até a menina vi com o `olhar` da tua excelente escrita... adorei mesmo, parabéns!

Bjs,


Alice