Sentada no cimo de um dos montes da Serra do Açôr, numa das fraldas da Deguimbra mas virada para o nascente por via de não perder pitada do exuberante espectáculo da chegada do nosso astro rei (Sol) a cada novo dia, que, generosamente, lhe vem aquecer e iluminar o âmago, sorri para a vida uma pequena aldeia de seu nome Pai das Donas.
Mesmo à sua frente, outras aldeias se desenham em salpicos brancos sobre o verde da encosta. Lá estão os Pardieiros, o Monte frio e a Relva Velha. Lá em baixo, mesmo ao fundo do vale, ergue-se em forma de cavalo a galope (sempre foi assim que se me afigurava quando para ela olhava da minha janela), a majestosa Benfeita. Terra grande com sede de freguesia sob a qual girava a social vida de todas as outras; quais servas abelhas em torno da colmeia real. Coisas mais ou menos importantes eram tratadas ali. Havia ainda os correios, o posto médico, a junta de freguesia, a igreja matriz para a missa de todos os domingos, a loja de panos e atoalhados da Xica (que à semana também era sardinheira e nos vinha rogar a sardinha à porta, mas aos domingos vendia peças a metro ao lado do marido por detrás do balcão de madeira da sua loja para os vestidos novos das moças casadoiras, que haveriam de ser feitos por medida na costureira). Havia ainda a padaria à Ponte Fundeira e, claro, duas lojas de mercearias. A do Péssimo e a do "correio". A do Ti Zé Maçarocas era a que mais freguesia tinha e para onde se encaminhavam os de fora, já de alma purificada depois da missa, em virtude de nas suas aldeias quase nada haver e sempre era preciso algum açúcar para meter no café de manhã, bem como massa ou arroz para desenfastiar das batatas e dos feijões que a terra dava com fartura. Ah, e claro, o fiel amigo bacalhau, o atum e mais alguma coisita que fizesse falta e não houvesse nas arcas ou na salgadeira, dado que a panela das aflições não durava para sempre...
Gente simples povoava quase todas as casas, bem diferente dos dias de hoje, que se contam pelos dedos das mãos as pessoas que restam.
O dia começava bem cedo onde roçadoiras e foicinhos não conheciam o descanso. Mato e erva para os animais que já reclamavam nos currais.
Ancinhos em punho, cavavam as terras à mão, não sem antes as "esbeirar" e "esbordinhar" em toda a volta. Enxadas e sacholas compunham os regos até se formarem verdadeiras obras de arte a fazer inveja aos artistas de outras artes. Ali, todos direitinhos, a orgulharem-se do criador e a encher quelhadas de cômoro em cômoro. Socalcos e socalcos de terras que dava gosto ver por todas aquelas encostas acima. Desde a sementeira do renovo até ao seu recolher.
Também havia fazendas mais longe, ao pé das nascentes que os mouros descobriram alguns séculos antes e onde construíram algares de xisto, que era preciso mais de uma hora ou duas a andar bem, para lá chegar. Tudo era amanhado, tudo verdejava de vida. Hoje só as silvas e os matagais a tomarem conta de tudo. Restam alguns currais ou ruínas dos mesmos, a lembrar que ali já houve gente. Muitos deles, totalmente engolidos pela natureza que voltou a reclamar aquilo que por direito já antes lhe pertencia.
Foi ali que cresci, entre pinhais e olivais, ladeiras e fragas. Aprendi e senti na pele a dureza do trabalho da terra, sempre com a esperança de que um dia haveria de ser melhor. E foi. Um pouco. Mas não me esqueço de me lembrar sempre do lugar onde estão as melhores memórias que alguém pode guardar. Aquelas da idade quando tenra, recheadas de inocência e ainda livres de outros males que no decorrer da vida vão pesando e transformando o semblante de cada qual.
Volto lá sempre com a mesma excitação de quem volta ao sítio onde foi feliz. Guardo em cada esquina qualquer coisa que me leva a viajar no tempo e volto a encontrar-me comigo nesse outro tempo onde estão todos os outros e todas aquelas vivências em suspenso.
Cleo (Lurdes Dias) 19 - 09 - 2014