O POETA DA LUA
Romance de António Casado
Capítulo primeiro – pág 7 - 8
CAPÍTULO PRIMEIRO
Com dez anos tinha resolvido a escola primária. A sede de conhecimento mantinha-se constante tal como as questões que inoportunamente colocava. Algumas eram de resposta pronta e acessível como o caso da Geografia, o uso e costumes de outros povos… Outras calavam as bocas e obrigavam os olhares a cruzarem-se de um medo que não compreendia. O porquê da pobreza incomodava-o. Ouvia falar em surdina da guerra colonial e inquiria-se sobre que falavam. Comentava, sem mesmo saber porquê, que nunca participaria numa guerra. Na escola tudo era bonito e cheio de flores. As colónias que conhecia eram território português e todos, portugueses e nativos, viviam uma imensa harmonia entre sorrisos e amores. Qual guerra?! A única que conhecia era a da literatura aos quadradinhos. Cobóis e índios americanos disputavam pedaços de terra com desvantagem para os segundos que eram sempre sanguinários e cruéis. Comentava algumas vezes aquelas epopeias com os amigos. Nunca entendeu porque queriam os cobóis usurpar pela força a terra aos nativos. Tão pouco chegou a perceber porque o Tio Patinhas era egoísta ou porque o Pato Donald nunca tivera oportunidade de enriquecer. Sabia, isso sim, que diante da cadeira da escola onde se sentava todos os dias havia duas fotos enormes. Uma do Américo Tomáz e outra de Oliveira Salazar, às quais juntaram mais tarde Marcelo Caetano. No centro um enorme crucifixo! Todos muito sisudos e temidos… Era como se uns olhos invisíveis espiassem todos os movimentos dentro da sala de aula e retirassem liberdade a alunos e professores. Pessoalmente não gostava de os ter diante de si como aranhas, mas a idade não lhe oferecia a oportunidade de decidir. Quando perguntava que faziam aquelas figuras na parede a professora erguia o rosto, fitava o tecto branco com um enorme brasão oval desenhado no centro e respondia:
- Estão a cuidar de nós!
- Mentira! Quem cuida de mim é a minha mãe.
Encolhia os ombros. Nada lhe diziam. Restavam as historietas da Mocidade Portuguesa para onde o queriam atirar. Alegavam que era um miúdo esperto e como tal devia aprender a devoção à Pátria. Consideravam-se os membros desta organização uma elite disposta a morrer pelas fronteiras dando como dignos exemplos do seu sacrifício personagens como Egas Moniz, Nuno Álvares Pereira, Luís de Camões e, claro, os governantes. Afastados do lema “Pátria ou Morte” usavam o “Pátria ou Nada”! O fundamental era darem continuidade às ideias conservadoras aprendendo a manter emperrado o desenvolvimento à custa do trabalho escravo e da repressão sobre a maioria do povo que exigia ser livre. Nunca se interessou por aquela organização.
A melhor notícia que a mãe lhe pôde dar naquele Verão foi a de que ia mandar instalar luz eléctrica em casa. Até aí estudara à luz de um candeeiro de vidro que funcionava a petróleo que a mãe colocava na cozinha. Concluía que se iam ter electricidade também teriam televisão. Deixaria de se reunir com os amigos no fim-de-semana em casa de uma vizinha de rua, a única possuidora daquele mágico aparelho. Viam filmes a troco de cinquenta centavos e assim passavam a tarde. A partir dali poderiam vê-los na sua casa. Séries como “Tarzan”, “O Santo”, segui-las-iam como um encontro marcado com a aventura. Os olhos saltaram de contentes e só pôde lançar-se ao pescoço dela e beijá-la. As férias de Verão começavam sob a égide de uma boa estrela.
No Ciclo Preparatório do Bocage o interesse pela leitura ganhou uma dimensão maior. Foi incentivado pelos professores a participar em diversos trabalhos de grupo incluindo o primeiro jornal editado em 71. O contacto com a poesia apaixonou-o. Rabiscava textos e rimas que guardava na estante do quarto. Entendia aquela forma de expressão como um sol que iluminava a alma. Tentava desbravar as palavras como um geólogo interpreta a estrutura terrestre. Descobria em cada poema um par de asas que o libertavam e alegravam.
Fazia parte de um grupo de rapazes considerados os “alunos mais brilhantes”. Com eles brincava nos intervalos das aulas e descobriu o xadrez. Alguns companheiros de turma movidos pela inveja denominaram-nos “as meninas”. Nem por isso se afastaram. As turmas reuniram-se para impedir a proliferação daquele epitáfio. Para eles o demérito aumentou na proporção da inveja.
Em casa o conflito entre os pais tornou-se evidente e preocupante. Assistia ao desenrolar das múltiplas discussões e acusações mútuas que só por mero acaso não terminavam em cenas de pugilato. Apercebeu-se de que na vida do pai existia outra mulher. A ideia angustiante de uma separação ganhou consistência dentro de si. Parecia-lhe que alguém vinha roubar parte do seu mundo. De um momento para o outro viu-se relegado para um plano qualquer onde não se encontrava e do qual não fazia parte. Discutiam o divórcio sem que o enquadrassem na nova realidade que se avizinhava como o papão dos pesadelos infantis. Até aí sempre se sentira apoiado. Com os pais repartira gloriosas vitórias e notáveis sucessos. Via neles um exemplo de concórdia e paz que fotocopiava para o futuro. Entronizava aquela relação como perpétua, algo que jamais se quebraria, cristal muito bem guardado no cofre da sua necessidade de protecção.