O POETA DA LUA
Romance de António Casado
Capítulo primeiro – pág 6 - 7
CAPÍTULO PRIMEIRO
- Levanta-te, rapaz! – Sacudia-o Maria dos Anjos naquela manhã de Outubro.
- Está frio…! – Resmungava Alexandre enroscando-se ainda mais nos cobertores.
- Faz-te um homem! Já estás crescidinho… tens seis anos!
Havia três meses que festejara o sexto aniversário. Fora no saudoso Verão de 66. A mãe tinha razão, estava crescido. Via-se diante do espelho do guarda-vestidos de madeira clara, em pijama, mão aberta na testa em forma de pala, tentando marcar uma linha invisível no vidro.
Levantar-se cedo nunca fora preocupante. A perspectiva das ondas muito azuis e frescas nas manhãs em que o levava à praia, as brincadeiras com os amigos no jardim durante as tardes que pareciam não ter fim, eram motivação suficiente para despertar com as galinhas. Naquele dia, não! O frio batia nas vidraças das janelas e umas assustadoras nuvens escuras rugiam no céu. Nenhuma razão era suficientemente válida para o arrancarem dos cobertores quentinhos que o agasalhavam.
- Despacha-te, molengão! Daqui a nada chegas tarde à escola!
Arregalou os olhos. O rosto redondo e meigo da mãe pronunciara a palavra “escola”. Há quanto tempo ouvira falar dela! Brincara muitas vezes frente àquele edifício de primeiro andar prendado com muitas janelas enormes viradas para o empedrado quadrado rodeado de árvores nas extremidades. Era o campo de futebol em miniatura da miudagem. No outro lado da rua, paralela à escola, uma fonte com duas bicas. Sempre pensou que por essa razão chamassem àquele lugar “Fonte Nova”. Todas as manhãs de bilhas de barro cru à cabeça lá iam as mulheres em busca de água potável; quando as vasilhas ficavam cheias, depois de posta em dia alguma conversa, transportavam-nas para casa pelas ladeiras alcatroadas da cidade. Era ali que brincava com os outros moços mais velhos quando saíam daquele palácio a meio da manhã e falavam de coisas que não entendia. Eram tantos…! A tarde era sem dúvida aborrecida. Desembestavam as raparigas pelas gigantescas portas de madeira aos gritinhos com propostas de brincadeiras pouco aliciantes. Que acontecia de importante dentro daquele edifício para o tirarem da cama tão cedo?!
Foi pela mão da mãe até à porta. Largou-a quando uma senhora muito alta e magra, cabelo castanho-escuro, unhas pintadas, bata branca, o chamou. Apontou um recanto junto ao corrimão de pedra que acompanhava os largos degraus de mármore onde todos os miúdos se juntavam. A mãe desaparecera com um aceno de mão. Um arrepio subiu-lhe pela espinha acompanhado de um medo estranho. Ela nunca o entregara a ninguém! Sempre estivera por perto e isso fazia-o sentir protegido. Como um herói em miniatura enfrentava agora o mundo com a camisa da mãe e as calças do pai. Olhava à volta e uma enorme quantidade de rapazes da sua idade pareciam sentir o mesmo. Alguns eram conhecidos das habituais paródias de rua. Ficou mais tranquilo.
Cedo se destacou na turma. Ler, escrever e contar, eram uma aventura permanente que gostava de viver. Ajudava alguns companheiros a completar os trabalhos de casa com o propósito de os deixarem brincar no Outeiro: Três centenas de metros de arbustos, algumas árvores dispostas num monte de relevo irregular cortado na base por um muro de pedras e barro com cerca de três metros de altura que acompanhava todo o comprimento, por duzentos metros de largura. No centro do muro brotava um fio de água natural por uma bica de pedra mármore a que intitulavam “Fonte da Xarroca”. Escassos metros de sonhos planeados nas aventuras de piratas, fantasmas, bruxas e mágicos. Contavam que no centro daquele paraíso juvenil desembocava uma das saídas do Forte de São Filipe, mandado construir por Filipe II Rei de Espanha, em 1580. A particularidade do forte é a sua forma estrelada adoptada na construção como um símbolo, um vigilante de atalaia permanente, o protector das investidas dos Corsários Ingleses. A entrada alimentava o imaginário das crianças. Contava-se que existiam algumas arcas repletas de moedas de ouro entre outros tesouros, propriedade das freiras da região, ali depositados durante uma fuga que nunca ninguém soube qual nem porquê. Várias equipas tinham-se aventurado a entrar na enorme boca escura e fria. Desciam os escassos dois metros de altura agarrados a uma corda e depois de alguns passos em frente deparavam-se com uma curvatura à esquerda que ainda ninguém transpusera. Desistiam. Quando regressavam à superfície contavam histórias terríficas! Falavam da quantidade exasperante de armadilhas que iam de ninhos de víboras, portais armadilhados de flechas… Um pouco de tudo! Afinal eram apenas umas teias de aranha no subsolo húmido e umas pequenas osgas…
Gostavam dele, da sua forma genial e simples de se integrar e interagir em grupo, das imaginadas brincadeiras, da forma irrequieta de ser. Também necessitava isolar-se. Desde que desvendara a maravilha das palavras adorava tomar pequenas notas num caderno. Os pensamentos que a imaginação providenciava com asas de celofane eram rabiscados com a letra mais pequenina que concebia. Era o orgulho dos pais. Um moço aplicado e estudioso. Os professores também faziam referência ao seu bom desempenho. Na quarta classe escreveu uma pequena peça de teatro que chegou a ser exibida por três colegas na escola. Imaginara uma disputa pela beleza e utilidade entre uma rosa, um cravo e um malmequer. Todos os personagens exacerbavam as suas qualidades, justificavam a formosura e tentavam superiorizar-se aos supostos adversários. Foi um momento de grande êxtase pessoal. Sorriu.