ENTRE A CRUZ E A ESPADA
VI
Saudades: Retorno ao Passado...
Seu sonho de tornar-se Presidente dos Estados Unidos esbarrava na Constituição do país, porque para ocupar tal cargo, era necessário ser natural da nação, ou seja, lá ter nascido: ele era tão somente naturalizado. Contentou-se em chegar, no máximo, ao cargo de Senador pelo Estado em que residia. Seu nome correu nos meios políticos como portador de grande inteligência, eficiência e dedicação ao trabalho, bem como o de ser um homem honesto em tudo o que fazia e dizia. Nada havia que manchasse sua reputação. No lar era atencioso e carinhoso com a esposa e os filhos, todos o amavam com profundidade. Certo dia, após o costumeiro almoço dos domingos, buscou o isolamento do terraço e se pôs a recordar tempos felizes de sua vida, em especial, dias vividos ao lado de Fernando Cintra. Grande saudade trouxe-lhe o pranto e, dos seus olhos, as lágrimas banharam sua face. Estava tão absorto nas reminiscências, que não percebeu a presença do primogênito ao seu lado.
- Por que chora, meu pai? – Perguntou Louis.
- Uma grande saudade se instalou em meu coração, filho – respondeu.
- De quem sente tanta falta?
- De meu pai. Estava aqui a lembrar-me dele, dos momentos felizes que vivenciamos juntos. Foi o melhor amigo que tive na vida, o homem que fez de mim, o que sou hoje.
- Lamento não haver conhecido meu avô – disse – deve ter mesmo sido uma homem excepcional.
- Certamente! - Foi tudo o que disse.
Pediu licença a Louis e se retirou. Seu coração batia forte, a saudade o remoía por dentro. Entrou no quarto e viu que Sara estava a dormir. Trocou de roupa e, sem que ela o percebesse, saiu na ponta dos pés, pegou o carro na garagem e ganhou a estrada. Estava precisando de solidão, necessitava curtir com toda intensidade aquela saudade. Tudo daria do que havia construído até então para ter outra vez ao seu lado, o inesquecível amor de sua vida. Deixou que o carro ganhasse velocidade e descobriu, à beira da estrada, a entrada de um bosque. Por este caminho seguiu até não ter mais onde colocar o carro. Estacionou debaixo de algumas árvores e abandonou o veículo. Andou que andou e chegou a um lugar cheio de belas folhas e protegido pela sombra. Sentou-se, elevou o pensamento ao alto e fez sentida prece : “Os anos passaram, eu envelheci, mas aquele menino que contigo conviveu, Fernando Cintra, ainda vive dentro de mim, assim como vivo estás em minhas lembranças. Meu amor é o mesmo, nada mudou...Ah, se pudesses romper as barreiras da Eternidade e voltar para mim... Juro, Fernando Cintra, tudo o que realizei até hoje foi puramente mecânico, sem ti ao meu lado nada me importa. Eu trocaria emprego, família, posição social, tudo, apenas para ter-te ao meu lado. Por que me abandonaste? Por que não venceste ao terrível mal que te vitimou? Por quê? Meus dias são escuros, minha vida é um fantoche... Mesmo assim, prossigo te amando e assim será até o final dos meus dias... Vem pelo menos em meus sonhos dizer-me que me escutas, se ainda em teu peito reside o amor que tiveste por teu filho... amo-te! Que Deus te tenha e cuide de ti... Amo-te!”
Permitiu que as lágrimas lavassem seu rosto. Longo tempo depois olhou o relógio e viu o adiantado das horas. Volveu ao carro e retornou para casa, já noite.
- Onde esteve, homem? – questionou Sara – Não vi quando você saiu.
- Fui dar uma volta – respondeu – intenso banzo apoderou-se de mim e eis que venho decidido a tomar uma resolução.
- Sobre o que decidiu? – Interrogou Sara.
- As empresas voltaram a fuçar-me em meu aspecto profissional – disse – eis que abandono a política e volto às minhas origens.
- Mas você é o Governador do Estado e tem o nome pleiteado para tornar-se Senador – Sara argumentou.
- Renuncio... não estou em paz comigo mesmo, além do mais a oferta de salário é irrecusável.
- Você sempre me ouviu antes de tomar suas decisões...
- Não desta vez. Amanhã mesmo entro com a carta de renúncia, nem sei mesmo porque me meti em política – concluiu.
Fez, no dia seguinte, como dissera a Sara no dia anterior. Com a família voltou a habitar a antiga residência, por sinal, uma enorme e confortável casa, propriedade que comprara há alguns anos . Voltou aos escritórios onde trabalhara como arquiteto projetista.
Não estava feliz, porém era o que gostava realmente de fazer.
Mais alguns anos se passaram. Há um ano estava viúvo, Sara morrera vitimada por uma mordida de cobra, não fora socorrida adequadamente. Seus filhos cresceram, casaram-se e ele estava só, vivia só, morava só.
Apesar de ser jovem, ainda, aposentara-se por problemas de saúde. Passou a sofrer do coração, pois, tivera um princípio de enfarte. Estava rico, quase milionário e poderia viver da maneira que melhor o aprouvesse. Contava 46 anos e pretendia colocar alguns planos em prática. Resolveu, de repente, retornar ao Brasil, mesmo contra a vontade dos filhos. Buscou em seus antigos papeis, documentos que lhe informassem o nome do banco e a conta poupança um dia aberta para si por Fernando Cintra. Encontrou-os. Descobriu através da internet o número do telefone da referida agência bancária e ligou. Queria falar com a gerência.
- Eu gostaria de saber se minha antiga conta ainda existe – pediu.
A gerência solicitou detalhes da conta e, em poucos minutos, obteve a resposta.
- Sim...- disse o funcionário – conta parada há muitos anos, mas com um grande saldo: 200 mil!
- Esta conta voltará a ter movimento. Estarei transferindo para ela neste instante o valor de 800 mil dólares. – Informou.
- Está bem, senhor. Pode fazer a remessa. Depois, quando possível, compareça à agência para fazer a atualização de seus dados cadastrais.
- Perfeito – concordou Matheus – quando eu puser os pés em Porto Alegre, farei isso. Muito obrigado pela atenção.
Depois que desligou o telefone, fez o que pretendia, transferiu o dinheiro. Posteriormente saiu, foi aos escritórios de sua Previdência e comunicou que estaria embarcando e que passaria a viver no Brasil. Solicitou que seus vencimentos fossem depositados na conta do banco em Porto Alegre.
Resolvidos tais trâmites, dirigiu-se a uma agência de viagens, levando consigo o passaporte. Comprou passagem e marcou a data da viagem: dois dias depois!
Um dia antes da viagem, convocou os filhos para uma reunião em sua casa. Fez a devida comunicação do seu retorno ao Brasil e deu a eles os documentos da residência, passando-a em seus nomes.
- Só levarei minhas roupas e objetos pessoais. Sobre os móveis e a própria casa, façam o que bem entenderem. Aos Estados Unidos não venho mais.
- Por que isso, pai? – Interrogou Ligia, a filha caçula.
-Motivos que somente eu posso compreendê-los. Caso sintam saudades de mim e queiram visitar-me, mandarei depois meu endereço fixo. Minha casa também será casa de vocês.
Dia seguinte, à noite, embarcava. Viagem cansativa e com várias escalas. Chegou em Porto Alegre quase ao anoitecer do dia seguinte. Hospedou-se num bom hotel e descansou. Despertou às 9 e meia do dia posterior. Tomou banho, arrumou-se, tomou no hotel mesmo o desjejum e saiu. Tinha em mente uma ideia fixa. Pegou um táxi e se encaminhou até o prédio onde, um dia, vivera com Fernando Cintra. Pagou a corrida e desceu. Foi até a portaria e falou com o zelador.
- Há algum apartamento aqui para alugar? – Indagou.
- Não há nada para alugar – disse o empregado – temos dois apartamentos vagos, mas que estão à venda.
- Em que piso ficam? – Outra vez perguntou.
- No último andar. Gostaria de vê-los?
No último andar... Certamente um deles era o apartamento em que residira um dia.
- Gostaria.
O funcionário do prédio o levou. Um dos apartamentos estava sujo e abandonado e, deste, Matheus logo desistiu. Foram olhar o outro, exatamente o que havia morado.
- Hum... disse – este está muito limpo e mobiliado...
- É. Esteve alugado até duas semanas atrás, quando o inquilino desocupou. O proprietário mandou limpá-lo todo e o mobiliou, totalmente. É uma mobília fina e é deste jeito que o quer vender. – esclareceu o zelador.
- Quanto ele pede pelo apartamento?
- Oitocentos mil, mas só vende à vista.
- Sem problemas. Você sabe como posso contatar o dono?
O zelador tudo forneceu a Matheus sobre o proprietário do imóvel. Imediatamente entrou em contato e, no dia seguinte, já estavam no cartório fechando negócio. Recebeu as chaves e retornou para o hotel. Pagou a hospedagem, pegou as malas e voltou ao apartamento, agora inteiramente seu.
“Que bom!” – pensou – “não preciso comprar nada, tem tudo, até tudo de cama, mesa e banho e tudo novo em folha.” Alojou-se nos aposentos que, um dia, dormira muitas e muitas noites com Fernando Cintra. Estava emocionado. Chorava. “Eis que retorno às raízes, pai. Pena não estares aqui ao meu lado para que minha felicidade seja completa.” Foi tomado de súbito por um sono incontrolável. Adormeceu. Sonhou. Sonhou com ele, com Fernando Cintra. O sonho tornar-se-ia, depois, vivo em sua mente. Como Fernando estava lindo!
Disse Fernando a Matheus no sonho:
“Meu amor por ti jamais se extinguirá. Voltaste às tuas origens, fico feliz com isto. Tens muito o que viver ainda. Algo muito importante acontecerá em tua vida, não renegues e nem tenhas dúvidas na hora de dizer um sim a ti mesmo no momento em que ocorrer. Espero isto de ti. Amo-te!”
Despertou com lágrimas nos olhos. Levantou-se. O sonho fora tão real que Matheus vasculhou todo o apartamento à procura de Fernando.
Decidiu tomar um banho, vestiu-se e saiu. Foi ao supermercado, porque precisava abastecer a geladeira. Logo retornou, comeu alguma coisa e ligou a tv a fim de assistir ao noticiário. Violência, esportes, política, coisas do cotidiano, porém uma reportagem mexeu com seus brios: “... toda a família pereceu no naufrágio, apenas escapando Lucas, um garoto de 13 anos, que não tem quem cuide dele.”
Então o repórter entrevistou o menino desamparado.
- Não há qualquer pessoa da família para cuidar de você, Lucas? – Indagou o repórter.
- Não! Meus pais eram filhos únicos, todos os meus avós são falecidos... – disse o menino.
Matheus encantou-se com a criança. Agora compreendia o recado de Fernando em seu sonho: “Não há dúvida, é para eu adotar este garoto.” – pensou. Como não havia trocado de roupa, desligou a tv e saiu. Pegou um táxi e se dirigiu à emissora que fizera a reportagem. Lá chegando, foi atendido por uma recepcionista.
- Boa noite – cumprimentou – como faço para falar com o repórter que fez a reportagem...?
- Se o senhor aguardar um pouco, logo o terá em sua frente. A equipe que fez este trabalho estará aqui dentro de poucos instantes. – esclareceu a recepcionista.
Esperou. Pouco tempo após, a reportagem externa chegava.
- Rui – disse a recepcionista – este senhor quer falar com você.
Matheus foi atendido pelo repórter e disse do que se tratava e do seu interesse em adotar Lucas.
- Mas que coisa boa – disse Rui – vamos, vou levá-lo até ele, agora mesmo.
Matheus entrou no carro de Rui que o levou até onde estava o garoto, internado num orfanato.
Desceram. Falaram com uma mulher que tomava conta das crianças que ali viviam e trouxeram Lucas à presença de Matheus.
- Lucas – falou Rui – este senhor quer conversar com você, ele tem interesse em sua adoção.
Lucas se aproximou ressabiado e sentou-se lado a lado a Matheus.
-Vi a reportagem, Lucas – Matheus disse – estou disposto a levá-lo para morar comigo, se assim for o seu desejo.
Lucas nada respondeu. Fitava-o da cabeça aos pés e tinha os olhos molhados por lágrimas que teimavam em não cair.
FIM DO CAPÍTULO VI