ENTRE A CRUZ E A ESPADA
IV
Alegrias e Confissões...
Dias depois seguiram para Santiago, Chile e Montevidéu, Uruguai, encerrando o período de férias. Retornaram num sábado, chegando em Porto Alegre, exatamente às 17 horas. Teriam, então, o restante do sábado e o domingo inteiro para descansar e se prepararem para o reinício das atividades na segunda-feira. E o retorno os pegou cheios de preguiça, embora só no horário da tarde devessem enfrentar os compromissos, rotinas da semana.
Fernando Cintra andava meio preocupado. Matheus, aos poucos e através de suas palavras, ia aprendendo coisas novas, ia aprendendo a lidar com a realidade. Realidade que em muitas situações é gratificante, mas, noutras, plenamente desconfortáveis. Por diversas vezes Fernando o orientou a não aceitar, de quem quer que fosse, caramelos, chocolates, refrigerantes abertos sem ser em sua presença. Com isto, Fernando o preservava das drogas, mundo cão que assedia e arrasa os jovens em clubes, escolas, academias e outros recintos. A recíproca por parte de Matheus sempre fora excelente, posto que obedecia na íntegra tudo o que Fernando o instruía. Por que, então, Fernando se mostrava preocupado? Que razões tinha ele para manifestar-se tão apreensivo? Simples! Matheus era um garoto belíssimo: boa altura ( 1,77 cm), pele clara, cabelos castanhos ondulados que causavam inveja, olhos cor de mel. Tinha o peito largo e liso e todo o corpo bem dividido. Este era o seu medo! Matheus chamava bastante a atenção de ambos os sexos e, numa dessas seduções que a vida coloca, poderia ver-se ele, de repente, presa fácil para os seus admiradores, entretanto, os dias se passavam sem quaisquer novidades quanto a estes aspectos... De qualquer modo, era bom sempre estar atento às coisas que surgiam. O que finalmente o tranquilizava, era ser Matheus positivamente confiável e não guardar dele, Fernando, segredos de espécie alguma. Tudo lhe contava, pedia opiniões, dividia, compartilhava, fosse qual fosse a temática.
Assim as etapas foram sendo vencidas e mais um ano se passou. Contava, agora, Matheus, 16 anos. Estava mais lindo e encantador e, também, mais esperto e experiente, apesar de prosseguir mantendo a sete chaves sua virgindade. Seu corpo era um mistério que deixava atônitos meninos e meninas. Driblava-os com argúcia e apenas Fernando, seu pai, tinha acesso a estes enigmas tão desejados... tão ardentemente desejados e sonhados!
Certa noite, Fernando o encontrou em casa profundamente pensativo. Não arriscou nada perguntar, sabia que ele, vinha lá, vinha cá e terminaria por abrir seu coração, já que por íntimo que fosse, não escondia segredos de Fernando.
- Acabei de chegar, já tomou banho? – Perguntou Fernando.
- Ainda não – respondeu – estava esperando que você chegasse para tomarmos juntos.
- Então vamos, pois, estou morto de fome e quero comer. Há algo especial para nós hoje?
- Comprei tapiocas com queijo numa padaria que fica perto da escola e bolo de milho, sei que você adora. – Respondeu Matheus.
Despiram-se e entraram no banheiro e, durante o banho, Fernando observava atenciosamente o quão belo que ficava a cada dia.
- Você está muito lindo, sabia? Seu corpo é de fechar o comércio, é de encantar qualquer cristão. – Falou Fernando.
- Só você eu permito ter olhos para ele, das outras pessoas morro de vergonha, como você está careca de saber.
- É, sei disso. Você está se guardando para o amor de sua vida.
- O amor de minha vida é você... sempre será!
Terminado o banho, colocaram cuecas e foram à cozinha. Lá se fartaram e vieram para a sala, onde começou a rolar o diálogo que Fernando já esperava.
- Preciso dizer uma coisa a você e pedir orientação – Falou Matheus.
- Fale – disse Fernando – você sabe que estou sempre à sua disposição.
- Estou entre a cruz e a espada – confessou – com o coração dividido.
- Paqueras? Namoro à vista? Quem são as gatinhas?
- Antes fossem duas gatinhas – colocou – uma é, mas o outro lado é um garoto. Por favor, não me crucifique...
- Nunca o crucificarei, Matheus – falou Fernando – seja lá quem você escolher, terá meu integral apoio. Não tenho preconceito, o amor é livre, devemos seguir o que o coração deseja. Quem são eles?
- A garota é Fátima, uma novata que entrou na escola este ano. Ela é linda, mexe muito comigo. O garoto é Demetrius, de outra turma e um ano mais novo que eu. Ele é lindíssimo e, também, mexe muito comigo. Não sei o que fazer, estou deveras dividido.
- Que idade tem Fátima?
- A mesma que a minha.
- Já houve declaração de alguma das partes?
- Não e este é meu medo... Não saberia dizer sim a um sem deixar de pensar no outro. Isto me confunde bastante.
- Deixe as águas rolarem. Momento chegará, com o passar dos dias, que você se resolverá por um dos dois. E Demetrius, ele demonstra ter características, digamos... que não sejam de hétero?
- Não, ele é absolutamente discreto. Se ele possui tais evidências, estas estão muito bem camufladas.
- E como você sabe que ele está afim de você?
- O olhar tudo revela, não é mesmo?
- Com certeza. Não se preocupe com estas coisas, como eu disse, deixe as águas rolarem, no instante exato você saberá a quem realmente quer, ou passa e se perde no tempo...
- Obrigado- agradeceu – sinto-me aliviado agora.
E se deitou no sofá com a cabeça no colo de Fernando, que ficou a acariciar seus cabelos e o rosto.
- Vou dormir em sua cama hoje – pediu – necessito demais do seu carinho.
- Você dorme em minha cama sempre que quiser. Também tenho algo a dizer a você.
- Diga.
- Desde que recebi meu primeiro salário deste emprego que venho depositando todos os meses numa poupança que abri para você, uma certa quantia.
- Por que faz isso?
- Porque nunca sabemos o dia de amanhã. Caso eu falte hoje, você não ficará desamparado, terá com o que se mover até ter condições de possuir o próprio sustento. Há também um seguro de vida em seu nome, no valor de 500 mil.
- Você está se agourando?
- Não estou, estou deixando um começo de futuro para você, só isso.
E mostrou a Matheus onde ele encontraria tais documentos caso um dia deles necessitasse.
- Você vai viver muito, meu pai. Vai ficar velhinho e arrastando bengala e eu dando a você tudo o que você me deu um dia.
- Do futuro apenas Deus sabe, nós não. Vamos dormir, estou com sono.
- Eu também.
Levantaram-se e foram para a cama. Logo o sono dominou a ambos.
Alguns meses se passaram e Fernando conseguiu novas férias, mas não sabia o que fazer com elas, não estava com ânimo para viajar... além do mais, Matheus estava em aula e faltavam poucas semanas para o vestibular. Depois de muito pensar e trocar ideias com Fernando, Matheus chegou à conclusão que queria cursar arquitetura, pois, sabia desenhar muito bem. Os dias avançavam e chegou o momento de prestar os exames na universidade. No íntimo, Fernando não sabia ser fácil a aprovação, porque Matheus não era dado aos estudos, apenas
estudava para não decepcioná-lo. Matheus fez as provas, agora aguardava os resultados, que não sairiam tão rapidamente. Fernando retornou ao trabalho, mais dois meses se passaram e em janeiro, após os festejos de final de ano, a grande notícia. Eram 7 horas da manhã, estavam ainda dormindo quando o telefone tocou. Era o diretor da escola, professor Farias.
- Alô,? É Matheus?
- Sim, o próprio. Com quem falo?
- Desperta, rapaz, você foi aprovado em Arquitetura, meus parabéns!
- Obrigado!
Matheus desligou o telefone e correu para o quarto de Fernando.
- Pai, pai, acorde – disse eufórico – passei no vestibular!
Fernando deu um pulo da cama. Já se levantou com os olhos cheios de lágrimas, de tanta felicidade.
- Que bom! Que bom! – pulava e dizia – Que bom! Parabéns!
Deu-lhe um forte abraço. Ambos choravam como duas crianças.
- Vamos tomar banho – disse Fernando – logo sairemos, tenho uma surpresa para você.
- Qual?
- Você verá!
Terminaram o banho mais gostoso dos últimos tempos. Estavam radiantes de alegria.
Após o banho, vestiram-se e saíram. Comeram qualquer coisa na rua. Fernando o levou a uma agência de automóveis e pediu a Matheus que escolhesse um.
- Você vai cometer esta loucura? – Indagou Matheus – Eu só tenho 16 anos.
- Vou – respondeu Fernando – Enquanto você for menor, eu dirijo para você, minha carteira ainda é válida.
Compraram um Clio, seminovo, com 1.000 quilômetros rodados. Trouxeram o carro para casa e não cabiam em si de tanto contentamento.
Os meses corriam. Matheus completou 17 anos e, em poucos dias, três anos fazia que estavam em Porto Alegre. Iniciaram-se as aulas na universidade logo após o período de matrícula e, por tabela, igualmente se encerraram para Matheus as manhãs em casa. Passou a acordar cedo todos os dias e só retornava ao lar no finzinho da tarde. Era uma nova etapa de sua vida, uma etapa que marcaria profundamente seu futuro. Outra vez passou por aqueles instantes de pouco contato com Fernando e tal fato o aborrecia tremendamente. Seu pai era a luz dos seus olhos, o ar que respirava, a grande odisseia de sua vida. Ultimamente andava irritado, de cara feia e mal falava com as pessoas com quem conversava, exceto Fernando. Não mais suportando aquele isolamento, à noite desabafou:
- Estou uma pilha de nervos – disse – não estou suportando só ver você à noite. Um imenso vazio me domina, fico em ponto de enlouquecer.
- Tenha calma – pediu Fernando – está chegando julho, tempo de férias e nós poderemos viajar.
- Não sei mais o que fazer – replicou – nunca mais tomamos um banho juntos, adoro tomar banho com você.
- Eu acho que aí dentro deste coração há algum segredo que você nunca teve coragem de me revelar. Acertei?
- Por que você pensa assim?
- Pela maneira como você se comporta sempre que passamos, por exemplo, alguns dias sem tomarmos banho juntos.
- E o que você acha que seja? – Interpelou Matheus.
- Um grande amor reprimido, um sentimento avassalador que o destrói em seu íntimo por ter de guardar conveniências.
Matheus não se segurou mais. Fernando o atingira em cheio, deixando-o totalmente descoberto em relação aos seus sentimentos. Abraçou Fernando e, convulsivamente, chorou em seu ombro. Era algo que ele nunca desejaria abrir, tamanho o respeito e a admiração que nutria por Fernando. Sua alma estava despedaçada, encontrava-se em frangalhos, seu âmago totalmente a mercê do pai e, ao mesmo tempo, um grande temor o assaltava, o receio da repulsa, a indignação de ver-se banido e enterrado dentro dos próprios sentimentos.
- Desculpe-me – pediu Fernando – eu não queria magoá-lo, longe de mim tal sentido em relação a você. O que tem a dizer-me?
- Tudo e nada! – respondeu – estou simplesmente ao seu total controle. Quando digo tudo, eis minha grande aspiração; quando digo nada, vejo todas as minhas esperanças serem sufocadas por uma rejeição.
- Quem disse que eu o rejeito? Eu o amo, você é a pessoa mais importante para mim. Hoje eu vivo encoberto por sua sombra. Nada mais desejo desta vida, a não ser você!
Matheus não esperava por esta declaração de sentimento. Não imaginava que Fernando o amasse tanto quanto ele, no mesmo nível e com as mesmas aspirações.
- Venha- disse Fernando – venha fazer o que há muito sente falta, venha tomar banho comigo.
Tomaram banho em silêncio. Enxugaram-se, vestiram-se e foram dormir. As revelações da noite precisavam de ser analisadas, pensadas e mensuradas no mais profundo de seus íntimos.
FIM DO CAPÍTULO IV