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21 rapazes, 21 raparigas e 1 cão (completo)

 
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21 Rapazes, 21 Raparigas e um Cão


«O meu bom dia vai sempre para os que trazem a cara suja... Sim, para eles, em especial...
- Vai lavar a cara João! Que feio, que feio com essa cara suja...
- Mas eu «labi-la»...
Ora, meus meninos, o João tem a cara limpa ou suja?
Suja!!! (E tem bigodes de café...)
O João, dez reis de gente... e a Laurinda, um tanto tonta...
Os dois... e mais o cão. E as patas, e as batas, e os narizes e os cabelos e... as caras sujas. Só o cão vem limpo. E quase sempre depois da hora...
O João, mas vós não podeis chegar assim tarde... É demais. A que horas saíram de casa?
- Inda era noite...
- Não pode ser. Dizei à vossa mãe que vos mande cedo. Olhai, logo levais um bilhete meu.
- ...
O pai é barbeiro; a mãe doméstica. Um rancho de filhos e apenas uns magros escudos para encher tanta boca faminta. O João entrou pela primeira vez este ano. Aprende com dificuldade, mas não é bronco de todo. É apenas uma criança inculta, um pedaço de granito duro e tosco que tem de ser limado e modelado. No entanto, é um amor de rapaz este João!
Mas... a Laurinda é repetente. Atraso mental. Olhos grandes e espantados, boca entreaberta, sorriso perene. Pés arrastados no soalho velho e pasta pendente na mãozita suja. Aí se vissem as mãos da Laurinda! Aquilo é preciso um balde de água para as pôr dignas de vistas humanas e civilizadas...
Falta o cão. Um cão negro e branco, de focinho simpático e rabo matreiro. Um cão, quase luxuoso, o da Laurinda. Vem com eles, vai com eles. Entra-me na sala e deita-se em frente do estrado, sereno e molengão. É um cão intelectual este. À hora da lição, arrebita as orelhas e senta-se nas patas traseiras a mirar o quadro, como se entendesse algo este maranho de letras e riscos. É um bom cão. É um cão matriculado na 1.ª classe desta escola frequentada por 21 rapazes e 21 raparigas, dirigida por uma professora um tanto estranha. Uma professora que não põe o cão na rua, porque não pode ver os olhos do João rasos de água, nem a cara da Laurinda angustiada.
No primeiro dia, tentei:
- Ponham esse cão lá fora!
- É do João! É da Laurinda...
- João, põe-me esse cão lá fora...
Os outros ergueram-se para escorraçar o cão, contentes da oportunidade de mexer um pouco. Mas, o João foi lesto. Foi dum só passo para o cão e abraçando-o como a um bebé levou-o ao colo, com todo o carinho, para fora da sala. A Laurinda aflita olhava-me. Diziam-lhe os lhos:
- Não faça mal ao cão... Não ralhe por causa do cão...
Tive pena do João, e sorri à Laurinda. O cão ficou sentado, do lado de fora da porta, obediente e sereno, mirando-me com os olhos grandes de animal fiel.
Fui até à porta e ele lambeu-me com o focinho doce a ponta dos sapatos. Vacilei. Fiz-lhe uma festa. O focinho ergueu-se e conquistou-me. O João, ao lado, tinha os olhos brilhantes de ternura.
O seu cão... A senhora fez uma festa a seu cão - diziam-me eles.
Regressei à secretária. Mas não vim só. O cão, de rabo matreiro, rastejou atrás de mim e foi aninhar-se todo junto da janela. Abri o diário de frequência, para fazer a chamada. Contei: vinte e um rapazes, vinte e uma raparigas e um... cão!»

Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973.
Data da conclusão da edição no blogue – 24 de julho de 2014
http://mariahelenaamaro.blogspot.com/
 
Autor
amacsequeira
 
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