Poemas : 

Abutres

 
Os abutres entraram na sala e vasculharam o lixo espalhado pelo chão de azulejo, tão frio ao toque.

A cor negra do escuro não te impediu de descobrir o papel fotográfico na boca do animal. Arrancaste-a com a mão da ansiedade e viste-a ali, de rosto carregado e disfarçado pela jovialidade, num contraste tão profundo como toda as palavras que conta.

Viste-a andar pelas ruas e os teus olhos recordam ainda a sua pele branca e as suas olheiras artísticas. Recordas-lhe o cabelo preso no cimo do crânio, e o cachecol a tapar-lhe o pescoço ossudo.

Lembras-te ainda como ela ia sozinha, carregada de retratos pelos dedos de carvão e com os lábios pegajosos das palavras de livros que a beijam à meia noite.

Sabes que o sabor dos lábios dela não sabe a cereja, mas a tabaco e decepção.
Sabes que provavelmente ela não tem sexo, mas que te sexualiza os pêlos erectos do braço.
Sabes que os lábios dela não são para ser tocados, que as mãos dela não são de aço e que os olhos se escondem em negridão dos abutres.

Os abutres vieram e invadiram.
Os abutres vieram e conquistaram.

E se eu fosse dizer que o chão continua frio? E se eu me quisesse queimar em água e afogar-me em chamas, só para te desconcertar de toda a tua certeza?
E se eu nunca tivesse perdido uma fé que nunca foi minha?
E se estas mãos não fossem minhas, mas eu delas?
E se eu não fosse eu, nem tu, nem uma alma sequer. E se eu fosse apenas um abutre de patas incapazes de sentir o frio e insaciável de lixo.
E se eu vasculhasse ainda o meu lixo, queimado por toda a água dos teus olhos?

Prendes-me a mão atrás das costas e encostas-me à parede.
São dez para as nove.

Arrancas-me as mãos, já que não são de aço e que também não são minhas e róis-me a cartilagem das orelhas.
São nove para as dez.

Passeias pela calçada sem te torcerem os pés e deixas que ele se sente na mesa de plástico vermelha, no meio da rua. Passas por ele e queimas-lhe as pestanas.
Agarras um por uma mão e aclamas outro com a outra. Abocanhas um com conforto e beijas o outro com as íris.

Lamentas-te, mas não te sacramentas.
Anulas-te, mas não te atiras às chamas.
Coses-te os olhos sem quereres deixar de ver.

Não sabes quem és, mas ainda te entranha o sabor do papel de fotografia na língua.
Deixei-te ir entre os dedos, deixaste-me ir entre os dentes.

Levitas na sala enquanto os abutres urinam na tua cama.
E eu estou de mão atada contra o cimento, já sem maças de rosto e de olhos unidos por linhas.

Guardas a baba que me escorre e pedes-me que te beba o sangue da jugular.

Enfias os dedos entre as minhas costelas sem pedir que me desfaça.

Mandas-me contra o corrimão de umas escadas que não me foram talhadas para os pés sem pedir que fique sem anca.

Pedes que fique após me arrancares as pernas. Ajoelhas-te para medires a minha altura e me olhares as olheiras.

Ajoelhas-te e suplicas que me sacramente e que leve as vozes comigo.
Implora-me então que te deixe sugar-me alma enquanto me forças a testa contra a parede e me consomes o resto do braço, de pêlos caídos.
Mas eu não tenho uma.

O relógio soa de novo, são três da manhã.
Os abutres comeram a madrugada.

Lau'Ra
 
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Lau'Ra
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