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não tirem o vento às gaivotas - sampaio rego sou eu
dou pelo nome de sampaio rego – escrevo. é com a escrita que procuro compreender o acerto perdido – sei que a escrita não muda um vírgula ao passado. sei-o muito bem. mas preciso de escrever. preciso de me ver em papel. preciso de parar no presente. renovar-me. absolver-me do pecado. purificar-me – quando escrevo fico preso na eternidade das palavras – sinto o corpo escuro. preto. não. talvez quase preto. um preto terylene. sombrio. opaco. débil. como quem vai desmaiar a qualquer instante. só as palavras brilham no branco. emergem em tinta preta viscosa – preto. gosto da cor preto. é a cor mais escura de todo o espectro de cores. moldada através da mistura de três pigmentos primários: vermelho. amarelo e azul – preto pode personificar apreço. etiqueta. morte. desolação. isolamento. medo. solidão. ausência de cor ou simplesmente uma forma de estar em vida – quem diria que três cores frondosas entranharam-me no corpo um preto-silêncio. preto–inseguro. preto-aflição – é assim o meu preto – escrevo preto. para experimentar a escuridão do meu preto procuro lugares ausentes do barulho. lugares cansados. lugares distantes da expectativa. das pessoas. da existência das coisas. das ruas. das sombras. da cama. da agonia. do pranto. do arrependimento – neste lugar da escrita não há morte. já se está morto há muito tempo e a vida acontece em flaches sombrios. ácidos – gosto do preto. gosto do silêncio entranhado no preto. gosto da raiva de língua preta. gosto do fumo preto no pulmão. gosto dos pássaros pretos. e de gatos também. trazem azar. quem diria. gosto do preto que se faz mulher e que me abraça num amor que é ferida e dói. dói a correr. dói à frente do corpo e dentro ainda mais e o amor magoado cada vez mais preto. mais enegrecido – amo o preto. nunca aprendi a amar outra cor – o preto é sempre tão aconchegante e eu tenho sempre tanto frio. estou sempre tão isolado. sozinho – no preto o silêncio é quase absoluto. raramente falamos. sussurramos. às vezes um desabafo em voz mais grossa para prova de vida – o silêncio é nosso. vive no preto desde sempre. nos arredores da vida. no descampado inútil. nas montanhas perdidas. nas cidades desertas. sem sirenes. sem ambulâncias. sem gente maltratada. sem cães vadios. sem velhos. sem portas. sem cartas e carteiro. sem nada que faça contraste com o preto – o preto é a minha companhia. fundimo-nos. todas as noites ali estamos. namorados eternos. a consumir escuridão. enrolada num charro de erva a alucinar. a causar pânico. paranoia. terror – a noite demora sempre mais que o dia. mesmo no solstício de verão – são sempre tão demoradas. negras. a cobrar sentimento – é única cor que nunca me abandonou. não sei viver sem a escuridão do preto – gosto do preto. habituei-me a gostar. deram-me à nascença e por aqui foi ficando. para sempre. acredito – já não conseguiria viver sem este negrume. sem este contentamento descontente – tenho medo de me perder numa overdose de contentamento. já não tenho raiva por amar o que é meu por destino. amo o preto da mesma forma que amo as pernas e as mãos – sem o preto não tinha pernas. sem o preto não escrevia – à minha volta só perdura o que é preto. gosto de preto-certeza em oposição a um branco-ilusão – tudo que tenho como certo é preto – lembro-me de andar vestido de preto. era interminável. o preto fazia-me maior. mais elegante. mais atraente. mais confiante. mais “look”. mais. “jet set”. dono da rua e do destino do mundo – com ausência de cor lá partia: roupa interior preta. meia preta. calça preta. camisa preta. camisola preta. casaco preto e para cobrir todo o preto uma gabardine preta igual à que keanu reeves usava no matrix – caía-me que nem uma luva. que classe. como gostava daquele preto impermeável. não havia mau tempo que lhe roubasse confiança. o capote tomava conta de mim – acreditava que a gabardine preta me atiraria para um futuro perfeito – nunca haveria de acontecer – todo eu era preto preto. um preto alegre [havia alegria no preto. nunca tinha feito luto]. preto-vida. só os olhos eram castanhos. com o tempo acabaram por escurecer. hoje. com ausência total de luz. tombaram para o preto – corpo preto. olhos pretos. palavra preta. vida preta – a cor é uma qualidade da luz. o preto sente-se – a palavra é escrita a preto porque o preto é uma cor universal. só há noite porque há preto. só há morte porque há preto. e só há viúvas porque estas se vestem de preto. todo o sangue pisado fica preto. e o preto a dizer: és sampaio porque és capaz de provar que a cor das palavras é feita da cor dos olhos de quem as escreve – quem lê não acrescenta cor. absorve cor – empírico – como sampaio não falo. tenho medo. o conhecimento mata cada vez mais escritores que gostam do preto: camilo castelo branco. antero de quental. mário de sá carneiro. trindade coelho. florbela espanca. o caminho da verdade é um calvário que a ninguém interessa – porque me hei de dar a quem não compreende esta atração pelo preto? o autor escreve para si. escreve para fazer amor. e o orgasmo é a palavra que sente. é a frase que faz sentido numa vida que é apenas dele – viver o preto é vestir luto todos os dias pelo mesmo cadáver – sou sampaio. não sei se gostaria de ser outro nome. mas também não interessa. escrevo a preto. preto é inexistência de cor. na maior parte dos dias é inexistência de luz – escrevo o quanto baste para me fazer entender. enquanto leitor sinto que o que escrevo é tudo o que posso dar de mim. a palavra é um filho. um texto é uma família. um livro a perpetuidade. uma bem-aventurança que não existe para gente que nasce a gostar do preto – se o céu existisse de verdade seria preto. preto vivo. límpido. soalheiro. carinhoso. generoso. justo e não haveria uma única palavra escrita – ninguém escreve no céu que me impingiram nas aulas de religião e moral. nesse céu não há noite. nem mar. nem chuva. nem lua. nem peixes. nem árvores. nem os pássaros de ruy belo. há um deus que não me conhece – escrevo. escrevo palavras com a esperança de perpetuar o nome que uso nos silêncios pretos – escrevo gritos que guardo no corpo. ouço-os quando quero e quando não quero. no meio das consoantes surdas só as vogais fechadas dão sentido a uma vida que se esgota a uma só cor. preto preto – como se odiasse o amor grita: o amor só se faz por amor – aqui estou neste preto que já não é luto. nem amor. é rotina. onde o prazer não se cansa de marrar na cabeça de quem carece de escrever-se – escrevo. escrevo o momento – o escritor é um comunicador silencioso. um hermafrodita grávido de si no tempo – escrevo porque não desisto de ser feliz. mas mais do que ser feliz. escrevo porque quero continuar a viver e esta é a única forma de escapar ao preto dos lutos – tenho medo. o preto devora toda a radiação luminosa – *“mas não me toquem nesse dor. ela é tudo o que me sobra – um homem com uma dor é muito mais elegante. caminha assim de lado como se chegando atrasado chegasse mais adiante”
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Um homem com uma dor
É muito mais elegante
Caminha assim de lado
Com se chegando atrasado
Chegasse mais adiante
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*paulo leminski