A Última Dança da Glória
(Ficção. Com excepção de alguns topónimos, todos os componentes são fictícios.)
Dançava com tanto ritmo e com tanto gosto
que dava a impressão que queria dar a entender
a todos os que a observavam,
que aquela seria a sua última dança.
Estaria ela a pressentir alguma coisa?
Situada na área do bairro dos Coqueiros, em Luanda, a discoteca “Vénus na Terra” era, na altura, a maior e mais concorrida discoteca de Luanda. Aos sábados à noite, especialmente nos meses quentes, a referida discoteca constituía um ponto de atracção para jovens e adultos, homens e mulheres. A discoteca era ampla, com um grande salão de dança, bar e restaurante. Do lado esquerdo de quem entrasse estendia-se um longo corredor com casas de banho e, do lado direito, igualmente um longo corredor com quartos para os que preferiam passar ali a noite e só voltar para casa no dia seguinte. No seu amplo salão podia-se dançar ao ritmo de música de todos os tipos e de todo o mundo. Ali ouviam-se lindíssimas peças musicais dos anos 60, e ouvia-se o tango, a valsa, o bolero, a rumba, o samba, o jazz, o semba, o rock e até o baião e o swing dos anos 30. Era uma maravilha.
Na parte de trás, um vasto pátio com árvores e flores para quem, nas tardes quentes, ou nas noites de luar, preferia fugir um pouco ao barulho estridente da música ou da ruidosa vozearia dos frequentadores e sentar-se num dos muitos bancos de pedra que ali se encontravam para então desfrutar da suave brisa da tarde, ou da irresistível beleza de uma noite de luar.
Naquele sábado particularmente, de uma quente noite de Novembro, a discoteca encontrava-se mais apinhada do que nunca. É que, nesse dia, os estudantes da Faculdade de Letras festejavam ali o aniversário duplo de dois colegas, tendo convidado, para o efeito, os colegas de algumas outras Faculdades. O ambiente era de verdadeira festa.
Convidados e não convidados, todos se juntaram à festa dos aniversariantes e, por fim, todos comiam bolos, todos bebiam refrescos e cerveja e vinho e todos dançavam e riam e cantavam. Era uma alegria.
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Glória, estudante da Faculdade de Direito, havia acordado particularmente feliz nesse dia e nem ela sabia bem porquê. Há destas coisas na vida. Há dias em que, sem razão aparente, acordamos tristes, pesarosos, inactivos. Há outros, porém, em que saímos da cama envoltos numa onda de felicidade, de alegria e de tão grande bem-estar, que até por vezes nos assusta. E, simplesmente, na maior parte das vezes, não sabemos as razões. Nesse dia, a Glória encontrava-se num desses estados de espírito. Estava alegre, bem disposta, feliz, com uma vontade intensa de saborear a vida. E a sua felicidade e alegria redobraram quando, ao cair da tarde, se juntou aos seus colegas da Faculdade de Letras, na discoteca “Vénus na Terra” para festejarem os aniversários dos seus dois colegas. Ria, cantava, dançava, fazia rir os colegas, enfim. Quase que se podia dizer que ela era a rainha da festa. E então, quando já perto da meia-noite, um cavalheiro a veio pedir para dançar um “rock and roll”, de Elvis Presley, é que foi vê-la dançar. Dançava com tanto ritmo e com tanto gosto que dava a impressão que queria dar a entender a todos os que a observavam, que aquela seria a sua última dança. Estaria ela a pressentir alguma coisa?
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Quando a voz de Elvis Presley deixou de se ouvir e a música, lentamente, chegou ao fim, Glória suava por todos os poros, tal fora a energia com que dançara aquele “rock and roll”. E, logo que terminou a dança, dirigiu-se para o corredor onde se situavam as casas de banho e entrou numa delas. Foi a última coisa que fez na vida. Com efeito, sentiu, de súbito, qualquer coisa em volta do seu pescoço a apertar… a apertar… e isso foi a última coisa que sentiu na vida. Eram 23h50m.
Cerca de cinco minutos depois, alguém que havia ido à casa de banho, deu o alarme, com um grito:
-- A Glória está morta na casa de banho! Venham! Oiçam! A Glória está morta! Na casa de banho!
Toda a gente se precipitou para o corredor. O gerente da discoteca correu para ali, gritando:
-- Não mexam no corpo. Deixem-me passar. Deixem-me passar -- continuava ele a gritar ao mesmo tempo que abria caminho às cotoveladas e avançava rapidamente para a casa de banho onde diziam que estava o corpo da Glória. Lá estava ela. Caída. Morta. Havia sido estrangulada com um fio eléctrico. O fio ainda lá estava, à volta do seu pescoço.
-- Oh, que tragédia! – murmurou o gerente da discoteca. E, virando-se para as pessoas amontoadas no corredor, gritou:
-- A moça está morta. Foi estrangulada. Por favor, voltem para o salão. Que ninguém mexa no corpo que eu vou agora mesmo ligar para a AngoCrime. (Nota: AngoCrime (Agência de Investigação e Notificação de Crimes).
-- Como é que se chamava a moça? Perguntou o gerente.
-- Glória – disseram várias vozes quase ao mesmo tempo.
-- Sabem de onde é? Conhecem a família? – perguntou ainda o gerente.
-- Era nossa colega da Faculdade de Direito – responderam alguns colegas da vítima, acrescentando: -- e é filha do Sr. José Nande, o dono da pastelaria “Bolos Doces”.
-- Alguém que vá avisar os pais ou que telefone para eles por favor. Digam-lhes para virem imediatamente à discoteca “Vénus na Terra”. Que ninguém mexa no corpo, por favor, que eu vou já telefonar à AngoCrime.
E o gerente afastou-se para o seu Gabinete.
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No salão, a música havia parado. Toda a gente estava do lado de fora, em frente à discoteca e todos se interrogavam quem teria assassinado a pobre Glória.
-- Coitada – diziam uns – estava tão contente hoje que até parece que se estava a despedir.
-- Tão nova – diziam outros – com tantos anos de vida pela frente.
-- Quando o dia chega, chega mesmo, estejamos onde estivermos -- disse uma senhora que limpava uma lágrima com a mão.
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Entretanto, os pais da Glória, o Sr. José Nande e a Dona Josefina Nande, que haviam sido avisados para se deslocarem com urgência à discoteca “Vénus na Terra” tinham, naquele momento, acabado de chegar tendo sido imediatamente recebidos pelo gerente que, sem perder tempo, os informou do infausto acontecimento e os levou à casa de banho onde jazia o corpo da filha. A mãe quase desmaiou de dor e dos olhos do pai uma lágrima, que se não conseguiu disfarçar, rolou silenciosa e amarga.
-- Já informei a AngoCrime – disse o gerente.
O Sr. Nande, porém, decidiu, por sua vez, contactar o detective AlfaZero (um detective independente muito conhecido) para proceder a uma investigação paralela à da AngoCrime (Agência de Investigação e Notificação de Crimes).
E, assim, dois investigadores da AngoCrime e o detective AlfaZero chegaram, quase simultaneamente, ao local para, de imediato, iniciarem as investigações. Na impossibilidade de acompanharmos as duas investigações em simultâneo, vamos acompanhar a investigação do detective AlfaZero. Caso a AngoCrime chegue, entretanto, a algum resultado digno de nota, informaremos.
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Cerca de quarenta minutos se haviam passado desde o assassinato da Glória, pois eram agora meia-noite e trinta e poucos minutos. O detective AlfaZero começou por examinar o corpo da jovem, tendo constatado que a mesma havia sido estrangulada com um fio eléctrico de cor preta, de cerca de 1 metro de comprimento. AlfaZero retirou o fio do pescoço da defunta e observou o sulco avermelhado que o mesmo, ao ser esticado, havia deixado no pescoço da jovem. E imediatamente a vista de falcão de AlfaZero captou um pormenor interessante. A jovem deveria ter sido estrangulada pelas costas pois o nó do fio encontrava-se do lado das costas da jovem. Ao examinar mais atentamente o sulco avermelhado feito pelo fio eléctrico, AlfaZero notou que o pescoço da jovem se apresentava um pouco mais dilacerado no lado direito quando visto de trás. Este pormenor significou para AlfaZero que a pessoa que apertou o fio eléctrico e, por conseguinte, que assassinou a jovem deveria ser “esquerda” ou, como também se diz, “canhota”, pois, ao puxar o fio exerceu, instintivamente, uma maior pressão com a mão esquerda do que com a direita. AlfaZero detectou, assim, uma primeira pista. Fora do que havia observado, não existia qualquer outro indício digno de nota, pelo que AlfaZero se retirou do local. Antes de voltar para a sua viatura, porém, disse aos pais da falecida que, logo depois do funeral iria visitá-los para lhes pedir algumas informações relacionadas com a filha. Esta mesma intenção foi manifestada às colegas mais chegadas da Glória. Depois de anotar as moradas, AlfaZero despediu-se e voltou para o seu apartamento-escritório na ampla e movimentada Avenida Marginal da bela e hospitaleira capital de Angola, a cidade de Luanda.
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O funeral da Glória realizou-se segunda-feira pelas 9 horas da manhã. Todas as pessoas que se encontravam sábado à noite na “Vénus na Terra” estiveram presentes no funeral. Muitas lágrimas sentidas, muitos ramos de flores e alguns poemas fúnebres feitos por algumas colegas testemunharam a grande amizade de que era alvo a Glória.
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No dia seguinte ao funeral, isto é, terça-feira, o detective AlfaZero deslocou-se, logo pela manhã, à casa dos pais da Glória. O Sr. José Nande e a Dona Josefina Nande receberam-no amavelmente e conduziram-no para uma pequena sala particular.
-- Desculpem vir incomodar-vos já, em pleno óbito, mas espero que compreendam. As investigações não podem esperar. Cada minuto perdido, pode significar o desvanecimento de uma prova. Bem, a primeira pergunta que lhes queria fazer é a seguinte:
-- Sabem de alguma circunstância, por mais superficial que seja, que possa ter conduzido ao assassinato da vossa filha?
-- Nada, absolutamente nada é do nosso conhecimento, Senhor detective AlfaZero, disse o Sr.José Njande. E a Dona Josefina acrescentou:
-- A Glória era uma rapariga perfeitamente normal e nada indicava nela qualquer perturbação, qualquer mal-estar. É curioso que no dia da sua morte ela até acordou extremamente bem disposta, a cantar, a rir, enfim… Oh, meu Deus, eu não sei o que terá sido!
-- A Glória tinha namorado? – perguntou AlfaZero.
-- Que nós saibamos, não – respondeu a Dona Josefina. Mas, já se sabe que essas coisas, como se costuma dizer, os pais são sempre os últimos a saber. É possível que tivesse algum namorado por aí sem que nós soubéssemos, não sei, ela não me costuma esconder nada. Talvez se o Sr. Detective AlfaZero falasse com as colegas dela mais íntimas pudesse saber mais alguma coisa.
-- Já sei que ela estudava na Faculdade de de Direito… que idade tinha ela?
-- Ela estava para fazer 22 anos agora em Dezembro.
-- Ah, ia-me esquecendo. Sabem se ela se relacionava com alguém que seja “canhoto” ou, como também se diz “esquerdo”? – perguntou AlfaZero, a pensar no indício que observou no pescoço da falecida.
O Sr. Nande olhou para a mulher, esta olhou para ele e ambos responderam quase em simultâneo, olhando para o detective AlfaZero:
-- Não, que nós saibamos, não.
-- Pronto – disse o detective AlfaZero levantando-se – vou agora passar pela casa da Carla, que me foi indicada, pelas colegas na noite da sua morte, como sendo a amiga mais íntima da Glória. Os meus pêsames mais uma vez e prometo-vos que tudo farei para descobrir quem tirou a vida à vossa querida filha.
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Alfazero direccionou a sua viatura para o Miramar, que é o bairro onde se localizava a casa da Carla. Na casa da Carla, o detective AlfaZero foi recebido pela Dona Luísa, a mãe.
-- Bom-dia, minha senhora. Eu chamo-me AlfaZero e sou o detective que está a investigar a morte da Glória a moça…
-- Ah, queria falar com a Carla, não é? -- Interrompeu a Dona Luísa.
-- Sim, preciso muito de falar com ela.
-- Entre e sente-se aqui na sala, que eu vou já chamá-la – disse a Dona Luísa, indicando um sofá a AlfaZero para se sentar.
Passados alguns minutos, a Carla cumprimentava AlfaZero.
-- Bom-dia detective AlfaZero. Como está? – disse ela estendendo-lhe a mão e sentando-se à sua frente.
-- Ah, Carla, como está? Desolada e cansada, suponho.
-- Não imagina, detective AlfaZero, o que significa perder, de um momento para o outro e inesperadamente, a melhor amiga. Eu e a Glória éramos como se fôssemos irmãs.
-- Carla -- disse o detective AlfaZero indo directamente ao assunto -- a Carla era a melhor amiga da Glória. Peço, por conseguinte, que me diga tudo o que sabe a respeito dela que possa ter concorrido para o seu assassinato. Só assim eu poderei descobrir quem matou a sua amiga para que pague pelo crime que cometeu.
-- Nós estudávamos na mesma Faculdade, estávamos quase sempre juntas, partilhávamos alguns segredos… o que é que o detective AlfaZero gostaria de saber, em particular?
-- Diga-me, Carla, a Glória tinha algum amigo ou alguma amiga que fosse “esquerdo” ou “esquerda”, isto é, que utilizasse a mão esquerda no desempenho das suas tarefas normais, em vez da direita?
-- Umm…não. Nunca a vi com ninguém que fosse “canhoto” ou “canhota”, respondeu a Carla.
-- Por acaso sabe se a Glória andava metida em negócios escuros, tais como venda de drogas, por exemplo?
-- Não, detective AlfaZero. Quase que lhe posso garantir que ela não andava metida em nada disso – respondeu a Carla, com convicção.
-- Agora uma pergunta mais íntima… sabe se a Glória tinha namorado?
Carla hesitou. Custava-lhe revelar um segredo que, em vida, a amiga tanto lhe pedira que o guardasse. Agora enfrentava um dilema: continuar a guardar o segredo conforme a amiga lhe pedira, ou contá-lo para ajudar na investigação da sua morte? Será que contando o segredo a AlfaZero, lhe estaria a trair? Ou estaria a ajudá-la a vingar-se da pessoa que a assassinou?
AlfaZero captou a sua hesitação e, por isso, encorajou-a:
-- Carla, por favor, se sabe de alguma coisa, diga-me. Só com todas as informações possíveis poderemos chegar ao assassino da Glória. A Carla não ficaria com a consciência tranquila se soubesse que o “carrasco” da Glória continuava sem pagar pelo seu crime, só porque guardou um segredo que poderia ter sido útil à investigação. Por isso peço-lhe, Carla, se sabe de alguma coisa, diga-me.
Carla suspirou, apoiou a cara nas palmas das mãos e disse quase num sussurro:
-- A Glória namorava com um homem casado.
-- Ah, sim?! – disse, surpreso, AlfaZero.
-- Sim, detective AlfaZero – prosseguiu a Carla -- ele estava na discoteca na noite da sua morte. Foi com ele que ela dançou o “rock” da sua última dança. Ela gostava muito dele e disse-me que logo depois de terminar a Faculdade iria passar a ser a sua segunda mulher.
-- Esse homem é casado… tem filhos? – perguntou AlfaZero.
-- A Glória disse-me que ele é casado já há 24 anos. Quanto a filhos ela disse-me que ele nunca quis falar no assunto e que sempre que ela abordava o assunto, ele desviava a conversa.
-- Por acaso a Glória disse-lhe como ele se chama e o que faz?
-- Olhe, ela disse-me que ele se chama Marcos, Marcos Ricardo ou Marcos Rodrigues, qualquer coisa assim, mas sei que o primeiro nome é Marcos. E ela disse-me que ele é proprietário de um stand de aluguer de viaturas, na Ilha.
-- Carla, lembra-se de mais algum pormenor relacionado com a Glória, que ache que possa ser útil à investigação? Qualquer coisa que se lembre… que ache que seja importante…
-- Não sei se isto será importante -- disse a Carla hesitante -- temos um colega, o Fernando Nando, que estava perdidamente apaixonado pela Glória. Acho que todos os colegas sabem. A Glória nunca correspondeu ao amor que o Fernando lhe manifestava. Mas nós todos sabemos que ele a amava intensamente. Ela própria também sabia mas não correspondia. Uma vez quando lhe perguntei porque não correspondia ao Fernando, ela respondeu-me:
“Seria, efectivamente, mais lógico que eu namorasse com o Fernando, que é mais ou menos da minha idade e solteiro, do que namorar com o Marcos que é muito mais velho do que eu e casado. Porém, o amor não se escolhe nem se submete à lógica das coisas. O amor nasce sem nós pedirmos que ele nasça e a ele se subordinam os nossos sentimentos, cegos a quaisquer preconceitos sociais ou morais. Apesar de o Fernando sentir um grande amor por mim, eu não o amo. E é essa a razão.”
-- Ela devia gostar muito desse tal Marcos – disse AlfaZero como se falasse consigo próprio. E acrescentou:
-- Carla, sei que está cansada e que precisa de dormir um pouco. Agradeço-lhe pelas úteis informações que me deu. Seja forte neste momento difícil em que perdeu a sua melhor amiga. Até uma próxima oportunidade -- despediu-se AlfaZero.
-- Até à próxima, detective AlfaZero. E desejo-lhe boa sorte nas investigações.
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AlfaZero entrou na sua viatura e rolou, devagarinho, em direcção ao Kinaxixe. Debaixo de uma sombra e num local onde podia estacionar, parou para pensar e coordenar as ideias. Neste momento, duas pessoas começavam a bailar-lhe na mente, como suspeitos: o Fernando Nando, o colega da Glória que a amava e que não era correspondido e que, num acesso de ciúmes, poderia tê-la assassinado; a outra pessoa que, igualmente num acesso de ciúmes poderia ter assassinado a Glória, era a esposa de Marcos Ricardo, o homem com quem a Glória namorava. Seria, por conseguinte, imprescindível que ele falasse com essas duas pessoas, para conhecê-las e para que a sua intuição lhe prenunciasse o assassino da Glória, caso o mesmo fosse uma delas. Assim, AlfaZero decidiu começar pelo Fernando Nando.
AlfaZero pôs o carro a trabalhar e partiu para a Faculdade de Letras. Encontraria ali o Fernando? Ao pedir informações a alguns colegas dele, um deles, apontando para um banco que se encontrava num jardim do lado de fora do edifício onde funcionava a Faculdade, disse:
-- O Fernando Nando é aquele que está sentado naquele banco.
-- Obrigado, disse AlfaZero, partindo em direcção ao banco de jardim onde se encontrava o Fernando Nando. Ao chegar junto dele, disse:
-- Desculpe incomodá-lo mas preciso de conversar um pouco consigo.
-- Ah, sente-se – disse o Fernando, afastando-se um pouco para o lado para dar lugar a AlfaZero e olhando para este com uma certa curiosidade.
-- Olhe, Fernando, eu sou o detective AlfaZero e estou em serviço, a investigar o assassinato da Glória – disse AlfaZero mostrando-lhe o seu cartão de identificação.
-- Ah!, -- disse simplesmente o Fernando.
-- Fernando, eu sei, porque já me disseram, que você amava loucamente a Glória – disse AlfaZero olhando-o nos olhos.
-- E por isso o Senhor detective AlfaZero pensa que fui eu que a matei, por ciúmes!? Porque ela não me correspondia. Pois vou dizer-lhe com sinceridade, detective AlfaZero. Não fui eu que matei a Glória e nunca tal pensamento me passou pela cabeça – disse o Fernando com um misto de determinação e desprezo pela ideia. -- Amava-a perdidamente -- prosseguiu ele -- daria a minha vida por ela, se fosse preciso. Sofri em silêncio toda a sua indiferença. Roía-me de ciúmes quando via uma viatura parar em frente à Faculdade na hora da saída e a via entrar nessa viatura e partir nela não sei para onde, talvez com alguém a quem ela, provavelmente, entregava os seus carinhos. Fiz tudo para que ela correspondesse ao meu amor. Tudo. Mas a tudo ela era indiferente. Apesar de tudo, eu só desejava a sua felicidade e guardava sempre a esperança de um dia ela aceitar o meu amor. Se eu a matasse, Sr. Detective AlfaZero, essa esperança morreria com ela.
Nesta altura, AlfaZero notou que duas lágrimas rolavam nas faces de Fernando Nando.
-- Senhor detective AlfaZero – prosseguiu ele – se as minhas palavras não são suficientes para o convencer de que não fui eu que matei a Glória, felizmente tenho um álibi. Eu estive, efectivamente, na discoteca “Vénus na Terra”, sábado à noite. Mas exactamente na altura em que a Glória foi assassinada eu encontrava-me na clínica “Saúde e Vida”, nos Coqueiros, pois senti uma indisposição terrível por volta das 23h30m, provavelmente devido a qualquer coisa que comi e que não me caiu bem. Só regressei à discoteca por volta das 24h30m, quando já o assassinato havia sido cometido. Tenho aqui o Registo de Consulta da Clínica com a hora de entrada e saída, o motivo porque fui consultado e o tratamento recebido. Este mesmo Registo encontra-se, igualmente, no Livro de Consultas da Clínica.
AlfaZero estava já meio convencido de que o Fernando não era, não podia ser, o assassino de Glória. Pareceu-lhe demasiado sincero, ingénuo até, para que cometesse tão bárbaro crime. Mas precisava ainda de se certificar de mais um pormenor. Precisava de saber se o Fernando era “esquerdo”.
-- Por favor, Fernando, disse AlfaZero, vá à Faculdade e tire uma fotocópia ao seu Registo de Consulta da Clínica. Vou precisar dela.
Passados alguns minutos, o Fernando voltava com a fotocópia solicitada por AlfaZero. Então, para testar se ele era ou não canhoto pediu-lhe que ele assinasse a fotocópia. Ele assinou com a mão direita, normalmente, provando, assim, que não era canhoto.
-- Fernando, disse AlfaZero, acreditei nas suas palavras. A fotocópia do registo de consulta é apenas uma formalidade. Vou continuar a procurar o assassino da Glória.
-- Encontre-o detective AlfaZero. Encontre-o para que pague pelo horrendo crime que cometeu e pelo grande sofrimento que me está a causar.
E ambos se despediram com um aperto de mão.
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AlfaZero entrou na sua viatura e dirigiu-se para o seu apartamento-escritório. Precisava de comer qualquer coisa. Eram agora 13h30m e começava a sentir fome. Preparou qualquer coisa rápida e comeu. Depois sentou-se no seu cadeirão. Pensava. Só lhe restava, agora, um suspeito: a esposa de Marcos, o homem com quem a Glória namorava. Para chegar a ela, teria de falar primeiro com o próprio Marcos.
Por volta das 14h30m, AlfaZero rumou para a Ilha, à procura do Stand de aluguer de viaturas de Marcos. Não foi preciso procurar muito. Logo à entrada da Ilha, um transeunte indicou-lhe onde era. Depois de entrar numa rua secundária, e de dar mais uma ou duas curvas, AlfaZero viu o anúncio que procurava:
Stand de Aluguer de Viaturas
“Rodas de Luanda”
de
Marcos Ricardo
AlfaZero estacionou a sua viatura em frente ao Stand e entrou. Um jovem veio atendê-lo:
-- O Senhor deseja alguma coisa?
-- Sim. Desejo falar com o Sr. Marcos Ricardo. É urgente.
-- Vou já chamá-lo – disse o jovem afastando-se para o interior do que deveria ser o escritório.
Logo em seguida apareceu um homem muito bem conservado, elegante, que aparentava ter à volta de cinquenta anos, e de fisionomia afável. Apresentava, contudo, um ar melancólico.
-- Muito boa-tarde – disse ele aproximando-se de AlfaZero. – Em que posso ser-lhe útil?
-- Olhe, Sr. Marcos Ricardo, eu chamo-me AlfaZero e sou o detective que está a investigar a morte da Glória.
Ao ouvir o nome “Glória”, Marcos Ricardo pestanejou e disse:
-- Vamos entrar, Sr. Detective.
Entraram para o escritório. Aqui, AlfaZero prosseguiu, depois de se sentar num cadeirão, ao lado de Marcos Ricardo:
-- Pois, como lhe estava a dizer, Sr. Marcos, eu sou o detective que está a investigar o assassinato da Glória. E para não perdermos muito tempo, eu vou direito ao assunto e vou falar-lhe com franqueza. Sr. Marcos Ricardo, eu sei que você era amante da Glória. Sei, também, que vocês nutriam um grande amor, um pelo outro. Em minha opinião não há nada de errado nisso. Porém, como deve compreender, a sua esposa passou, de imediato, a ser considerada suspeita do crime pois, por ciúmes incontrolados, ela poderia ter assassinado a Glória. A questão agora é a seguinte. No prosseguimento das minhas investigações eu preciso de conhecer a sua esposa, de conversar com ela. Como poderei chegar até ela? Contando-lhe a verdade? Dizendo-lhe que ela é suspeita porque você era amante da Glória?
-- Por amor de Deus, detective AlfaZero, não faça uma coisa dessas. Destruiria a minha vida familiar – disse, assustado, Marcos Ricardo e prosseguiu: -- nós estamos casados há cerca de 24 anos, temos uma filha de 21 anos e não cairia bem essa notícia em casa. Seria a destruição do meu casamento, o desmoronamento do meu lar. E a minha filha sofreria um choque terrível. Aliás, eu e a Glória havíamos concordado em que logo que acabasse a Faculdade, ela passaria a ser minha mulher mas sem que eu tivesse de me separar da minha primeira esposa.
-- Então como poderei chegar até à sua esposa?
-- Sr. AlfaZero, vamos fazer o seguinte: à hora do jantar, aí por volta das 19 horas, apareça em minha casa e eu então apresentar-lhe-ei à minha esposa, não como detective, mas como meu amigo pessoal, com o nome, por exemplo, de Artur. Janta connosco e, assim, terá igualmente oportunidade de conhecer a minha filha. Ela é estudante na Faculdade de Ciências Sociais e também esteve na discoteca “Vénus na Terra”, na noite do assassinato. E, Senhor AlfaZero, cá entre nós. Olhe que eu ponho as minhas mãos no fogo em que como não foi a minha mulher que matou a Glória. Eu conheço-a bem, por dentro e por fora e quase que lhe juro que não foi ela que a matou. E mais, Sr. AlfaZero. Ela não conhecia a Glória, não sabia do nosso caso e nem sequer esteve na discoteca na noite do crime. Mas pronto, o Senhor detective vai conhecê-la, e depois tirará as suas conclusões. Olhe, aponte aí a minha morada.
Alfazero apontou a morada de Marcos Ricardo e disse:
-- Está bem, Sr. Marcos, eu prometo que não direi nada à sua esposa sobre o seu caso com a Glória. Espere por mim, então, por volta das 19h00 para jantar.
E AlfaZero entrou na sua viatura e voltou para o seu apartamento-escritório, na Avenida Marginal.
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Estava o detective AlfaZero a passar em revista alguns apontamentos seus, já no seu apartamento-escritório quando o seu telemóvel acusou uma chamada. Era o Inspector Juvenal, da AngoCrime:
-- Alô detective AlfaZero, como tem passado? – Perguntou ele ao iniciar a chamada.
-- Menos mal, Inspector Juvenal. Ando bastante atarefado com o caso da jovem estudante que foi assassinada na discoteca “Vénus na Terra”. O pai pediu-me que investigue o caso.
-- Ah, olhe, nós já temos em prisão preventiva um rapaz estudante que, segundo os colegas, andava maluco pela jovem que foi assassinada. Presumimos que, por ciúmes, ele a tenha morto. É um tal Fernando Nando. Ele vai ficar por aqui até que se obtenha mais dados relacionados com o caso.
-- Ah, o Fernando Nando?! E é o único suspeito que têm? – perguntou AlfaZero.
-- Sim, por enquanto é o único, mas estamos a considerar colocar igualmente em prisão preventiva o gerente da discoteca pois, segundo o que se diz por aí, o homem parece que foi visto, na altura do crime, a sair de uma das casas de banho.
-- Ah, nessas alturas diz-se tanta coisa, Inspector Juvenal…
-- E você detective AlfaZero, já conseguiu detectar alguma coisa ou identificar algum suspeito?
-- Nada, Inspector. Por enquanto nada de concreto. Vamos ver o que nos trarão os próximos dias.
E a conversação telefónica foi terminada, com um “até breve”.
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Por volta das 18 horas, AlfaZero partiu em direcção ao Bairro Azul para o jantar com Marcos Ricardo e a família. Precisamente às 19 horas, ele tocava à campainha da casa de Marcos Ricardo. Ele próprio veio atender.
-- Ah, o meu amigo Artur! Entre Artur, entre. Olhe, chegou mesmo a tempo para comer um caldo connosco. Clotilde, vem conhecer o meu amigo Artur – chamou o Sr. Marcos para a cozinha.
A Dona Clotilde, a esposa do Sr. Marcos Ricardo, saiu da cozinha para a sala. AlfaZero observou-a. Devia rondar os quarenta anos mas aparentava juventude. E era bela. E dos seus olhos transpirava felicidade e do seu sorriso transbordava simpatia.
-- Clotilde, apresento-te o meu amigo Artur. Conheci-o hoje no Stand e como ele também está ligado a este ramo de negócio tornámo-nos bons amigos.
-- Tenho muito prazer em conhecê-lo – disse ela estendendo a mão a AlfaZero.
-- O prazer é todo meu, Dona Clotilde, disse AlfaZero apertando a mão da esposa de Marcos Ricardo.
-- A Sofia já chegou? Perguntou o Sr. Marcos à esposa.
-- Não, ainda não, respondeu a Dona Clotilde que, entretanto, acrescentou ao ouvir alguém entrar pelo quintal. – Olha, deve ser ela. Ó Sofia, és tu?
-- Sim, mãe – respondeu uma voz da cozinha. Cheguei agora mesmo.
-- Vem cá, temos visitas.
Sofia entrou na sala. AlfaZero poisou os olhos nela. E, logo à primeira vista, simpatizou com ela. Era alta, esguia, de formas sinuosas. Não usava pinturas nem jóias com excepção de um relógio no pulso direito. Os olhos eram negros, a boca pequena e bem desenhada. E era extremamente parecida com a mãe, notando-se, porém, alguns traços do pai.
-- Sofia – disse o Sr. Marcos Ricardo – este Senhor chama-se Artur e é meu amigo.
-- Muito prazer – disse ela estendendo a mão ao detective AlfaZero, com um sorriso.
-- Muito prazer, Sofia – disse o detective AlfaZero que, naquele momento, acabava de ver um dos sorrisos mais belos de toda a sua vida.
-- Bem – disse a Dona Clotilde – vamos ao jantar antes que arrefeça.
E todos se dirigiram para a sala de jantar.
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AlfaZero observava tudo com muita atenção. Uma coisa que lhe saltou imediatamente à vista, ao observar a forma como os membros da família se serviam e comiam, foi que a Dona Clotilde não era “esquerda” mas, em contrapartida, a Sofia era. Com efeito, ela utilizava a mão esquerda para executar as tarefas usuais da refeição (servir-se, cortar os alimentos, levar os talheres à boca, etc.)
-- Então como vão as coisas por Benguela, Artur? – perguntou o Sr. Marcos Ricardo, olhando para AlfaZero.
-- Por lá as coisas vão indo, devagar, mas vão indo -- respondeu AlfaZero e acrescentou: -- mas Luanda é que é cidade. Não há dúvida. Aqui sente-se a vida a palpitar.
-- A vida e, por vezes, também a morte. Há tanta delinquência por esta Luanda fora… -- disse a Dona Clotilde, com ar pesaroso.
-- Ah, lá isso é verdade, Dona Clotilde. Olhe, eu cheguei sábado e mesmo sábado à noite estava eu na discoteca “Vénus na Terra” quando foi assassinada uma jovem, uma tal Glória, acho que se chamava Glória. Parece ter sido estrangulada.
Ao acabar de dizer isto, AlfaZero olhou de soslaio para a Dona Clotilde e quase simultaneamente para a Sofia. E AlfaZero notou que as mãos da Sofia tremeram e que o garfo que ela tinha na mão caiu e tilintou no soalho.
-- Estás distraída, filha – disse a Dona Clotilde, meio envergonhada. -- Não te estás a sentir bem?
-- Vim um pouco nervosa da Faculdade, mãe. Tive uma pequena discussão com uma colega e agora estava a pensar nisso. Ah, mas não é nada de especial.
Entretanto, AlfaZero, pensava:
“Não me digam que a Sofia é a pessoa que assassinou a Glória. Poderá lá ser? Que motivos teria ela para o fazer? Mandada pela mãe que, entretanto, descobrira o romance do marido com a Glória? Ciúmes do pai? Porque terá ela ficado nervosa quando ouviu pronunciar o nome da Glória, a ponto de deixar cair o garfo? E ela é “esquerda”…”
-- Pois, Sr. Artur – disse a Dona Clotilde virando-se para AlfaZero -- eu soube da morte dessa rapariga no dia seguinte logo de manhã quando ouvi as notícias na televisão. E a Sofia depois confirmou. Ela esteve lá na discoteca, nessa noite, foram lá festejar o aniversário de uns colegas. Esta terra, Sr. Artur, está infestada de marginais. Não se está à vontade em lado nenhum. E então nós, mães, não imagina como ficamos com os corações apertados quando os nossos filhos vão para esses locais onde se concentra muita gente. É um martírio, Sr. Artur.
-- Imagino, Dona Clotilde – disse AlfaZero – mas olhe que o crime existe em todas as grandes cidades do mundo. E Luanda, naturalmente, não poderia ser uma excepção. Luanda já é uma cidade bastante grande e com um número considerável de habitantes.
E, virando-se para a Sofia, AlfaZero perguntou:
-- E a Sofia, tem frequentado muitas discotecas?
-- Não, nem por isso – respondeu ela. -- Eu sou muito caseira. Fui sábado à “Vénus na Terra” mais por causa dos aniversários dos meus colegas.
-- Desde pequenina ela sempre foi muito caseira – disse o Sr. Marcos Ricardo, que acrescentou:
-- talvez isso se deva ao facto de ser filha única.
-- E quando está em casa o que faz, Sofia? – perguntou AlfaZero.
-- Oh, gosto muito de fazer duas coisas: ler e ouvir música. Tenho uma grande colecção de livros e de discos. Nesse aspecto agradeço muito aos meus queridos pais -- disse ela olhando amorosamente para eles. E acrescentou: -- passe por aqui amanhã à tarde que lhe vou mostrar.
-- Terei muito gosto Sofia. E não toca nenhum instrumento musical?
-- Não, não toco -- respondeu a Sofia -- já tentei aprender piano mas, talvez por ser “canhota” não me ajeitei.
-- Ah, a Sofia é “esquerda”? – perguntou AlfaZero, fingindo não ter ainda notado esse pormenor.
-- Pois, ela é “esquerda” de nascença -- respondeu, por ela, o Sr, Marcos Ricardo.
-- Mas olhe, Sofia, que há “esquerdos” que foram e são grandes tocadores de piano.
-- Ah, sim, Christopher Seed, por exemplo. Mas a mim não me deu para aí. Eu acho que isso também depende dos genes de cada pessoa. Quanto a mim, o que eu tenho mesmo na mão esquerda, é força e não jeito para tocar e outras coisas.
-- Força!?!? Perguntou, surpreso, AlfaZero.
-- Sim, força. Não sei porquê, mas tenho muita força na minha mão esquerda. Eu consigo fazer coisas com a minha mão esquerda que a maioria das pessoas, mesmo alguns homens, não conseguem com a direita -- disse a Sofia com um misto de orgulho e prazer.
-- Não me diga, exclamou AlfaZero. É interessante. Olhe, Sofia, quero fazer uma experiência consigo para ver se é verdade isso que a Sofia me está a dizer. Amanhã, quando vier ver a sua colecção de discos e livros, vou trazer um objecto para testarmos se realmente tem mais força na sua mão esquerda do que eu na minha mão direita.
-- De acordo, estou disposta a fazer o teste – disse a Sofia com a convicção de que iria vencer.
-- E por falar em força – disse o Sr. Marcos Ricardo – depois de um jantar tão delicioso, quase que não tenho forças para me levantar.
-- O mesmo digo eu – disse o detective AlfaZero -- mas tenho de fazer um esforço e levantar-me mesmo pois está já a fazer-se tarde e eu tenho de ir andando. Quero dar os meus parabéns à Dona Clotilde pela excelente refeição.
Todos se levantaram da mesa. AlfaZero despediu-se de todos, prometendo à Sofia que no dia seguinte viria, sem falta, ver a sua colecção de livros e de discos e fazer a experiência de forças.
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AlfaZero conduzia lentamente para o seu apartamento-escritório. Pensava no jantar. Pensava em Sofia. Um pressentimento terrível lhe dizia que a Sofia era a pessoa que havia assassinado a Glória. E, por mais estranho que pareça, ele queria que não fosse ela a assassina. Porque havia começado a simpatizar com ela. Porque gostava da simpatia dela, da candura dela e, especialmente, do sorriso dela. Contudo, algumas particularidades diziam a AlfaZero que ela poderia ser, efectivamente, a pessoa que havia assassinado a Glória. Ela havia ficado nervosa a ponto de deixar cair o garfo quando se falou na morte da Glória… e, por outro lado, era “esquerda” e ele estava absolutamente convencido de que a Glória havia sido assassinada por uma pessoa “esquerda”. Mas, que motivos teria ela, para assassinar a Glória? No dia seguinte, à tarde, iria à casa dela. E então faria uma experiência que, pensava ele, iria determinar se era, ou se não era, efectivamente, a Sofia a assassina da Glória. E se o resultado da experiência fosse positivo? Se fosse, efectivamente ela a assassina da Glória? Seria um choque para ele mas ele teria de a entregar à justiça. Ele era um profissional e não poderia, de forma alguma, ocultar uma criminosa. Também não poderia deixar de fazer o teste, pois estaria, nesse caso, a desviar-se do seu dever profissional. Seria, igualmente, um choque para os pais. Um verdadeiro choque, tanto mais por ela ser filha única. Mas a vida é assim, reserva-nos surpresas e nós temos de saber enfrentar essas surpresas com coragem e abnegação.
AlfaZero estacionou a sua viatura na garagem do seu prédio e subiu para o seu apartamento-escritório. Viu um pouco de televisão e depois deitou-se tendo logo em seguida, adormecido.
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No dia seguinte, logo pela manhã, AlfaZero dirigiu-se a uma loja de brinquedos na área da Mutamba e pediu que lhe vendessem uma boneca grande, com um revestimento forte, especialmente à volta do pescoço. AlfaZero meteu a boneca numa caixa e pôs a caixa no banco de trás da sua viatura. Em seguida passou por uma casa de venda de artigos eléctricos e comprou um metro de fio preto, semelhante ao que foi utilizado para assassinar a Glória. Depois disso, AlfaZero regressou ao seu apartamento-escritório, tendo aí permanecido até às 15 horas.
Às 15 horas, AlfaZero desceu do seu apartamento-escritório, entrou na sua viatura e rumou para o Bairro Azul ao encontro de Sofia conforme lhe prometera. Depois de tocar à campainha, foi a própria Sofia que a veio abrir.
-- Alô Artur, estava mesmo à sua espera. Pensei que se tivesse esquecido.
-- O prometido é devido, Sofia.
-- Entre e sente-se – convidou a Sofia. Mas o que traz nessa caixa? Não me diga que é o tal “aparelho” para fazermos o teste das forças. Eu até pensei que estivesse a brincar.
-- Não, Sofia, não estava a brincar. Eu sou muito curioso, sabe? Gosto de descobrir coisas novas. Gosto de estar sempre a aprender. E é por isso que eu gostava mesmo de confirmar se, por ser
“esquerda”, a Sofia tem uma força acima do normal na sua mão esquerda.
-- Ah, compreendo – conjecturou a Sofia – a curiosidade faz-nos chegar muito longe… e diga-me uma coisa, Artur. Quer fazer a experiência já, ou vamos antes dar uma vista de olhos aos meus livros e discos?
-- Como queira, Sofia.
-- Está bem, então vamos fazer já a experiência e depois vamos ver uns livros e ouvir boa música. Tire lá o seu aparelho da caixa.
AlfaZero abriu a caixa e retirou dela a boneca e o fio eléctrico que havia comprado. Ao ver aqueles dois objectos, a Sofia exclamou, ao mesmo tempo que olhava para eles e para AlfaZero um tanto ou quanto espantada:
-- Uma boneca?! E um fio eléctrico?! Mas que “aparelho” estranho. Como é que isso funciona?
AlfaZero notou que os lábios de Sofia tremiam e que, de repente, ela deixou de se sentir à vontade.
-- Olhe, Sofia -- explicou AlfaZero -- com este fio eléctrico a Sofia vai apertar o pescoço da boneca durante 15 segundos. Seguidamente eu farei o mesmo, ou seja, colocarei o fio eléctrico um pouco abaixo ou um pouco acima da marca deixada por si e esticá-lo-ei durante 15 segundos. Depois disso, verificaremos a profundidade do sulco deixado pelo fio. Do lado direito para o seu caso, pois foi desse lado que a mão esquerda exerceu maior pressão e do lado esquerdo para o meu caso pois foi desse lado que a mão direita exerceu maior pressão. O que tiver produzido um sulco mais profundo é o que tem mais força.
À mente de Sofia chegou, nítido, um pensamento que a torturava dia e noite e que, agora, ao ver aquela boneca e aquele fio eléctrico, o seu subconsciente havia juntado a esse pensamento a imagem a ele associada. Ficou nervosa, estonteada, quase sem poder falar. Após a explicação de AlfaZero disse apenas, rapidamente e num murmúrio:
A ideia é interessante mas continuo a achar o ”aparelho” um tanto ou quanto estranho. Mas está bem. Vamos então a isso. Vou começar eu.
A Sofia pegou no fio eléctrico e colocou-o em redor do pescoço da boneca. A boneca estava de costas para ela. AlfaZero notou que ela fez o nó rapidamente e, com a mesma rapidez, começou a esticar o fio como se quisesse acabar com aquilo o mais rapidamente possível. As suas mãos tremiam. AlfaZero tinha o seu relógio de pulso na mão esquerda, a contar os segundos. Logo que a Sofia começou a esticar o fio, AlfaZero gritou:
-- Estique o fio Sofia, estique com força como esticou quando matou a Glória.
Ao ouvir estas palavras, a Sofia deu um grito, largou o fio e correu para a mãe que, entretanto, havia corrido para a sala ao ouvir o seu grito. Sofia chorava e dizia em voz alta:
-- Fui eu que a matei, mãe, fui eu. Fui eu que matei a Glória.
-- Mas o que é que estás a dizer, filha? Tu estás louca? – Perguntava a Dona Clotilde, olhando para ela, depois para o detective AlfaZero, depois para a boneca e para o fio eléctrico, sem compreender nada do que via e do que ali se havia passado.
-- Não estou louca, mãe. Fui eu mesmo que a matei. Não conseguia guardar mais este segredo dentro de mim. Este segredo torturava-me dia e noite. Eu tinha que desabafar. A minha vida estava um inferno, eu não aguentava mais -- continuava a Sofia a dizer em voz alta e a chorar como uma criança.
-- Oh, minha Virgem Santíssima – disse a Dona Clotilde, benzendo-se – acuda-me. Isto é o fim da minha felicidade. Mas isso é mesmo verdade, minha filha? E porque havias tu de fazer isso? Oh, meu Deus!
Entretanto, chegava à casa naquele momento o Sr. Marcos Ricardo que, ao presenciar aquela cena na sala de visitas, ficou completamente espantado.
-- Mas o que é que se passa aqui? – Perguntou ele, olhando para a filha a chorar agarrada à mãe, olhando para o detective AlfaZero sentado no cadeirão e para a boneca e o fio eléctrico por cima do tapete, no soalho.
AlfaZero levantou-se e, cumprimentando o Sr. Marcos Ricardo, disse-lhe:
-- Sr. Marcos, seja forte. A vida reserva-nos muitas surpresas e você deverá estar preparado para receber, talvez, a que será a maior surpresa da sua vida. Não deixe que o seu amor de pai o faça sucumbir, nesta hora dolorosa. Sr. Marcos, a sua filha, a Sofia, é a pessoa que assassinou a Glória.
Ao ouvir estas palavras, o Sr. Marcos Ricardo correu para a filha, agarrou-a nos ombros e disse em tom doloroso:
-- Não, filha. Diz-me que não foste tu. Diz-me que tu não mataste ninguém, Sofia. Diz-me querida. Diz-me que não é verdade.
-- Fui eu, pai -- gritou a Sofia -- não adianta negar. Eu não aguentava mais esta tortura. Fui eu que matei a Glória.
Ao ouvir estas palavras, o Sr. Marcos Ricardo deixou-se cair no sofá, com a cabeça entre as mãos, a soluçar.
A Dona Clotilde, sem dizer palavra e com os olhos rasos de lágrimas, saiu da sala com a Sofia.
AlfaZero meteu a boneca e o fio eléctrico na caixa, pegou nela e, sem se despedir de ninguém, saiu para a sua viatura. Já no seu apartamento-escritório, na Marginal, telefonou ao Inspector Juvenal da AngoCrime informando-o que havia localizado o assassino, ou melhor, a assassina de Glória, dando-lhe o respectivo endereço para que a fossem buscar.
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Na AngoCrime, a Sofia prestou o seguinte depoimento:
“Chamo-me Sofia Ricardo, tenho 21 anos, estudo na Faculdade de Ciências Sociais e sou filha única de Marcos Ricardo e de Clotilde Ricardo. Os meus pais sempre foram bons para mim sob o ponto de vista material. Quer dizer, sempre me deram dinheiro para eu comprar aquilo que queria. Sob o ponto de vista afectivo, porém, só a minha mãe se interessava por mim. O meu pai, raramente me acarinhava, nunca me levou a uma festa, a um espectáculo, nunca me levou a passear de carro, nunca quis saber da minha vida sentimental. Eu para ele era quase como se fosse uma estranha, apesar de ser filha única.
Então, entrou na vida dele uma outra mulher. Estudante como eu. Da mesma idade que eu. Essa outra mulher chamava-se Glória. A Glória que eu matei. Tudo aquilo que me foi negado pelo meu pai, foi concedido à Glória. A Glória era levada a festas pelo meu pai, ia a espectáculos, a restaurantes, a salões de baile, a feiras, a picnics, a cabeleireiras, a costureiras, enfim…
Então uns ciúmes terríveis e sinistros começaram a apoderar-se de mim, ao mesmo tempo que comecei a sentir um ódio viperino por essa mulher, que não só ocupava o lugar que a mim nunca me foi dada a oportunidade de ocupar, mas também roubava os carinhos e as atenções que deveriam ser para a minha mãe.
E então um pensamento sinistro, macabro, apoderou-se de mim: matar! Sim, matar. Matar essa mulher odiosa. Esperar pela oportunidade certa e matá-la. Então pensei que aquele sábado de festa de aniversário dos colegas da Faculdade de Letras, na discoteca “Vénus na Terra”, seria uma oportunidade ímpar.
Antes de ir para a discoteca, peguei num pedaço de fio eléctrico que havia já arranjado há algum tempo e que estava bem guardado, enrolei-o e meti-o no bolso das calças por trás do lenço. Tive sempre o cuidado de não pegar no fio com as mãos nuas para evitar deixar nele quaisquer impressões digitais. E na discoteca, esperei. Esperei sádica e inexorável pelo momento certo. E o momento certo chegou.
Quando a Glória, depois de ter terminado de dançar com o meu pai, aquela que foi a última dança da sua vida, e se dirigiu para uma das casas de banho, eu segui-a, sem que ninguém se apercebesse. Pus-me atrás dela e… zás. Foi fácil. Ela nem sequer viu quem a matou. Depois fui rapidamente para uma das outras casas de banho e só sai de lá quando as pessoas já se amontoavam no corredor depois de alguém ter encontrado o corpo da Glória. Estava, assim, concretizado o plano que eu acalentava nas minhas longas horas de solidão.”
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O Inspector Juvenal, da AngoCrime, murmurou, com um suspiro:
-- Um plano macabro e cruel…
-- Sim, um plano sinistro em que a vítima apenas o que queria era viver, viver os melhores anos da sua juventude, ao lado da pessoa que amava… – acrescentou AlfaZero que, propositadamente, se havia sentado por trás de um dos Sub-Inspectores para que a Sofia não o visse.
-- Quando as coisas começam mal, acabam mal… -- rematou um outro Sub-Inspector da AngoCrime, ao mesmo tempo que todos se levantavam para regressarem aos seus gabinetes de trabalho.
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Para concluir, apenas queremos dizer que a Sofia foi julgada e condenada a uma pena de prisão maior e que os pais dela se separaram. Com efeito, ao chegar ao conhecimento da Dona Clotilde que a moça assassinada pela filha era amante do marido, não suportou a ofensa, agravada pelo facto de ter sido a causa da condenação da filha tendo, então, decidido separar-se do marido.
Quanto aos pais da Glória, o Sr. José Nande e a Dona Josefina Nande, continuam a sofrer a dor de tão grande tragédia nas suas vidas, mesmo sabendo que a pessoa que lhes matou a filha foi julgada e condenada para pagar pelo crime que cometeu.
Por seu lado o Fernando Nando, o rapaz que amava loucamente a Glória e que não era correspondido, foi posto em plena liberdade pela AngoCrime depois de esta lhe ter apresentado um pedido de desculpas pela prisão preventiva a que foi sujeito e dizem os colegas que, todos os meses, no dia em que a Glória foi assassinada, vai ao cemitério colocar um ramo de flores na sua campa.
A Clara, a que era a melhor amiga da Glória, anda agora sempre sozinha, não tendo ainda arranjado outra amiga íntima com quem partilhar os seus momentos de alegria e de tristeza e, sobretudo, os seus segredos mais íntimos.
Por último, o Sr. Marcos Ricardo, pai da Sofia e amante da Glória, não aguentou os dois golpes terríveis que sofreu (a condenação da filha e a separação da mulher), tendo falecido com um ataque de coração semanas depois de se ter separado da mulher.
E agora mesmo para terminar, resta-nos apenas dizer que a Briana, (amiga de AlfaZero e sua assistente alguma vezes) logo que tomou conhecimento de que AlfaZero havia identificado a pessoa que havia assassinado a Glória, telefonou-lhe:
-- Parabéns, detective AlfaZero! Mais um caso resolvido!
-- Sim, Briana, mais um caso resolvido… que surpresas nos trará o próximo?
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Escrito por
Helder Oliveira
(Helder de Jesus Ferreira de Oliveira)
(Do Livro (não publicado)
“Detective AlfaZero em Acção”
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-- Helder Oliveira --
(Helder de Jesus Ferreira de Oliveira)
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