Dezenove de junho de 2010, o galo já cantava, quando se ouvia um
padre correndo e batendo de porta em porta, ansioso, gritava: Acordem, vamos depressa, saiam todos! Corram para os lugares mais altos, levando o que puderem; muitos indagavam: Mas porque temos que sair correndo feito um bando de animais selvagens, padre? O padre respondeu então: O nível do rio Una subiu rapidamente e não tarda a logo nos alcançar! Uns acreditaram e de imediato procuraram abrigo... Outros foram dormir reclamando: esse
vigário não tem o que fazer uma hora dessas, perturbando o nosso sono. Uma senhora já de certa idade ao ouvir o padre, logo pensou: Aqui vou eu! Pegou seus documentos e saiu com muita pressa, na medida de suas condições, puxando dali e daqui logo encontrou um abrigo e ficou à espera do que estava por vir. Já manhã, só se ouviam gritos desesperados, muitos correndo de um lado para o outro sem saber para onde ir, ou sequer correr. Em outra parte da cidade, outros familiares diziam: nós não vamos sair, pois aqui as águas nunca chegaram e se chegarem a cidade se acaba.
De repente, se ouviu uma grande explosão:era um bueiro de esgoto que fervia como um vulcão antes da erupção;o barulho era terrível! Um dos moradores replicou:vocês ouviram isso? Uns responderam: é impressão sua, o barulho é porque o volume das águas é muito grande, mas nem chovendo está... Segundos depois, a tampa da boca de lobo foi jogada longe e o que se viu foi muita água; e logo disseram: é o fim do mundo! Nesse instante, as águas já estavam dentro das casas - e agora? Agora é o fim. Com muita dificuldade para se deslocarem, murmuravam: vamos para onde? Já saíram com dificuldade. Continuaram murmurando, dizendo: ó Deus! Tu disseste que nunca mais o mundo se acabaria em água, deixando até um sinal - o arco Iris, para nos lembrar disso. O que está acontecendo? Outros replicavam: deixa de conversa e corre! Quanto mais corriam, as águas iam atrás e onde paravam em questão de segundos a água ali já estava. Só se ouviam gritos de terror, pois as águas eram fortes e volumosas. Pensaram até ser um tsunami, por causa do barulho das ondas gigantescas que se formavam. Todos ilhados e gritando por socorro.
Já era noite quando o terror aumentou: as luzes se apagaram, começou a chover e aí o desespero foi maior. Gritos e mais gritos, uma verdadeira guerra. Houve pânico, desmaios - muitos passando mal, sem terem para onde ir, pois o hospital da cidade também já havia sido alagado, embora graças ao mutirão os enfermos tivessem sido removidos em tempo.
As águas continuaram subindo e invadindo tudo por onde passavam: subiram até às casas de segundo andar e todos atônitos, não acreditando no que estavam vendo. Só se ouviam lamentos: meu Deus, Meu Deus... Socorro! Não deixes que morramos! Quantas rezas, quantos pai-nossos, ave Marias e outras orações.
Muitos dos céticos quase morreram; abrigaram-se em cima de lajes, e foi então que entenderam o que o vigário falou. Viram coisas horríveis, pontes caindo, animais mortos e até mesmo um homem descendo correnteza abaixo. A cada explosão provocada pela queda brusca de pontes, casas e outras construções, grande era o barulho e ondas gigantescas se formavam.
Nesse instante todos se abraçavam e ficavam clamando a Deus para não morrer. Do outro lado da cidade, pessoas querendo a todo custo ajudar seus familiares que estavam presos e ilhados, acharam por bem entrar na cidade usando uma lancha para o resgate, mas não deu certo: as ondas arrastaram a embarcação, que só foi encontrada após três dias. Nessa noite de terror, Os telefones já não funcionavam e o desespero aumentou.
Numa vila havia pessoas saindo pelo telhado de suas casas, em busca de socorro, e em outro ponto uma mulher sem alternativa dizia: se ficar o bicho pega e se for o bicho come! Prefiro arriscar, ao menos morro certa de que tentei; a filha gritava: não, mãe, não vá! Você vai morrer! E a mãe: nós vamos, filha - passe na frente que eu vou atrás lhe protegendo. Confie em mim, filha; com fé em Deus vamos conseguir! E não é que conseguiram? Em outro bairro, dois irmãos arriscaram suas vidas para salvar sua irmã e seus sobrinhos presos em seu apartamento. Eles quase se afogaram, mas conseguiram sair dali e foram ao encontro dos flagelados.
Após três dias, as águas começaram a baixar e os celulares voltaram a funcionar; foi quando os familiares puderam falar entre si: cenas de intensa emoção a cada reencontro! Quando os flagelados pensavam em voltar para suas casas, mesmo enlameadas e bastante infetadas, ouviam-se ao longe rumores de um corre-corre: a barragem estourou e as águas já estão chegando! Velhos, crianças, todos sendo atropelados, um caos... Agora sim, não temos nem tempo para correr: é quase certo que desta vez não escape ninguém! Chorando, os idosos iam ficando para trás e muitos netos gritavam: corre vovó, vai logo, você vai conseguir! Foi quando se ouviu um policial dizer em alta voz: voltem para suas casas, é alarme falso, é mentira, foi um desalmado que inventou essa brincadeira de mau gosto!
Serenados os ânimos, todos começaram a perceber o estrago que as águas do Rio Una haviam provocado - não dava para acreditar no que estavam vendo... Um cenário de guerra, alguns cadáveres, animais aos montes, naquele lamaçal podre onde uma revoada de urubus rondava a fim de se deliciar, a quilômetros poderíamos sentir o mau cheiro insuportável. Finalmente, pude me aproximar da cidade onde nasci e cresci, muito ansiosa por haver chorado muito e sofrido com a mesma intensidade que afligiu os meus familiares, mais ainda por não ter notícias deles.
Ao chegar sobre a ponte na estrada que dá acesso à cidade, senti um aperto no coração! Foi difícil de acreditar no que eu estava vendo: destruição total. O que se viu na TV não chegava nem perto do que eu pude presenciar. O Rio Una deságua em Barreiros, minha cidade natal, e com todas as águas dos afluentes correndo para lá podemos imaginar a extensão da tragédia. Olhando naquela direção fiquei perplexa ao ver, em cima das casas que ficaram de pé, sofás, geladeiras, troncos de árvores etc. Até nos fios dos postes havia objetos pendurados! Na entrada da cidade havia muitos policiais, bombeiros e muitas pessoas desoladas sem ter para onde ir nem sequer o que comer; outros chorando com as mãos na cabeça, por não ter mais o que vestir, pois as águas haviam levado tudo... Não só dos pobres ribeirinhos, como também dos ricos. Naquele momento de dor e horror, fui remetida ao tempo de outrora, fui levada a alguns lugares lindos, lembranças da minha infância.
Aquele rio com lindas cachoeiras, onde eu e meus irmãos nadávamos de um lado para o outro, parecendo uns peixinhos! As águas eram cristalinas - pegávamos camarões, pitus e piabas... A rede era um simples pano de prato; tudo era saudável.
Onde estão os pássaros que cantavam e encantavam? A natureza entendeu o que estava acontecendo, não! Não era o momento deles, os urubus eram bem vindos. Os riachos já não existiam... As flores já não brotavam naqueles campos! Os rebanhos que pastava entre os rios, as águas os levou... Eu ali paralisada, botas sete léguas, roupa de mangas compridas, calças ensacadas, luvas e máscara. Só assim era permitida a entrada na cidade, pois o nível de infecção e doenças era muito alto.
Frente à velha usina onde meu pai trabalhou, grande foi a saudade, tão forte que as lágrimas rolaram sem cessar em minha face. A usina estava abandonada, destruída pelo tempo e pelas águas. Eu e meus irmãos, quando crianças, adorávamos aguardar a passagem dos caminhões de cana de açúcar para apanhar e sair chupando as que caíam pelo caminho. Que trabalho para mamãe! A fuligem sujando nossa roupa e impregnando nossa pele... Lembrei-me do cheiro do melaço na produção do açúcar: era bom demais. De repente acordei, voltando das minhas lembranças. Frente àquele portão, continuei chorando, respirei fundo e depois voltei para casa - tão triste como nunca imaginei ficar...
Mary Jun
Mary Jun