Último poema
Que sequem na garganta os dedos
As vozes e o canto na boca
Que não se acendam velas no escuro
Nem se enterrem os medos
Que este tempo já caiu de maduro
Por todos os lados da fruta oca
Primavera de Praga nos vinhedos
Que se desfaçam os noivados
Se mande embora a banda e os convidados
E os políticos maltrapilhos do lucro
Que se façam gente os malfadados
Que haja uma rosa sem água
Um deserto inteiro num vaso
Um doce ruir da fraga
E o presente seja um quase nada do acaso
Que haja um cego em desequilíbrio
Uma falsa passadeira de peões na estrada
Um crime sem castigo servido frio
Que após a morte em nós das crianças
Nunca mais soubemos tecer os afectos
Nunca mais soubemos as danças
Os nossos sonhos passaram a ter tectos
E foi aí, quando nos sobrou só a dor
Quando só nos restava a resignação
Que o poema jogou a nosso favor
E nos cortou a respiração
in: «Os poemas não se servem frios» 2010