Contos : 

Sérgio - Completo

 
O Sérgio

(Diário duma professora)

Disseram-me ontem que eu tratava muito democraticamente os meus alunos... Talvez. Questão de feitio e de amor. Os meus alunos são os meus filhos de... espírito.
Fiquei a sorrir-me toda cá para dentro.
Tolice! Afinal... afinal será isso realmente? Não sei... Só sei que tive na minha sala os rapazes mais engraçados deste mundo e que no meio deles me senti rapariguinha. Soa-me bem o termo: Rapariguinha!
Isto vem tudo a propósito do Sérgio... Quem teve alunos como o Rato, o Sérgio, o Luís, o Pedras... Quem teve alunos como esta professora da aldeia não pode meter ao canto do gavetão da cómoda antiga (ia dizer comodidade moderna) estas recordações que abrem dentro de nós clareiras de riso e de choro... De riso e choro, reparem.
É isso. Exatamente. E por isso é que dizem que trato um tanto democraticamente os meus alunos... Imaginem! Ia a falar no Sérgio... É que ontem encontrei-o!
Gostava que o conhecessem... Que o conhecessem como eu assim, com aqueles olhos verdes, transparentes de ingenuidade e alegria. Que o conhecessem com aquelas calças curtas e coçadas, com aqueles inconcebíveis casacos à três quartos que o tio lhe emprestava em dias de chuva.
Conhecer o Sérgio é aceitar-lhe as arremetidas dum pensamento belicoso e os acessos duma ternura transbordante e inesperada. Eu que fui professora do Sérgio... e dos outros. E sinto saudades. Vivas. Enormes. Inacreditavelmente sinceras.
E por isso o Sérgio ontem encontrou-me e gritou para mim num aceno de cordialidade sentida.
Travei bruscamente. Desliguei o motor e saí para a estrada inundada de sol.
- Eh! que a «Senhora ia na brasa!...
- Olá Sérgio! Então como vai a tua vida?
- Má... Não, não, boa!
(E ria com os dentes maravilhosamente brancos na cara trigueira).
Conversamos. Eu e o Sérgio. Depois, tive de seguir. Ficou no meio do asfalto cinzento a acenar com os braços delgados... Na primeira curva, o vulto dele desapareceu do espelho retrovisor e eu, de olhos fixos na faixa de rodagem, voltei de novo como num sonho vivo à sala ampla e arejada onde lecionei o Sérgio e... os outros.
Os olhos... a boca... o rosto sujo de tinta... os dentes brancos mordendo fruta verde... E aquela caligrafia harmoniosa e perfeita...
Alegre, esperto, duma vivacidade impressionante, quase invulgar...
Maroto. E falador...
- Estás calado, Sérgio?
- A «Sinhora» tamén... Só mais um quischinho... A gente inté rebenta...
Depois calava-se imediatamente e no rosto lia-se-lhe o firme propósito de se portar bem... Apenas o propósito.
Vinha esperar-me quase todos os dias. Era o meu guarda-costas.
Duas piruetas, uma gargalhada cristalina e seguia a meu lado conversando...
- Quando eu sér grande hem-de ir visitar a Sinhóra numa «espadinha» como a do Sr. Sobral... Há-de séri velhinha... assim... assim...
E fazia o gesto para convencer. Os outros riam. E, eu, com eles.
Um dia fez grossa asneira.
Dei-lhe duas reguadas. Lembro-me bem do ruído seco da régua nas suas mãos morenas e delgadas.
- Isto não volta a acontecer...
- A «Sinhóra» tamén... Hum... Foi sem créri...
Procurava reter as lágrimas. De revolta, claro. De repente, elas saltaram-lhe como contas de cristal no rosto moreno. E humilhado vociferou:
- Há-d'ir pró Inferno...
- Sérgio!
- Pois...
E o riso dele, inesperado como um milagre, ecoou na sala. Pazes.
À tarde, encontrei uma frase escrita na secretária forrada a mata-borrão: «Bateu-me, mas eu gosto na mesma da Sinhôra».
Simplesmente comovedor.
Nas aulas de moral, fincava os cotovelos no tampo da carteira e bebia-me as palavras sofregamente, de olhos escancarados e atentos.
E falava:
- Num compréndo... Não sinhóri... Então a gente cá em baixo passa tanta fómi, tanto frio, num tem que vestiri, nem calçári e inda vai pró Inferno... Hum... Num me cheira... Isso... Descurpe, mas isso é mentira...
- Mas... Sérgio...
- Num me cheira... Bem. Eu bou pró Céu. Tanho qu'ir. E mato o diabo.
- Então...
E discutíamos. Não calculam como era emocionante discutir estes problemas com o Sérgio, até o convencer da veracidade dos factos.
Mas... a «Sinhóra» sabe tudo!
E de olhos semicerrados ficava-se a tentar assimilar todas essas coisas novas que ouvia... e não lhe cheiravam. Friso. Estranhamente intuitivo.
É filósofo, o Sérgio.
Duro como pedra. Sedento de afeição. Voluntarioso. Tinha uma maneira tão sua de contar coisas sucedidas na rua... E inconveniente, às vezes.
E eu ouvia-o. Que fazer? Com crianças assim! Imensamente cómico. Eu só queria que o vissem recitar aquela conversa da Pena e do Tinteiro! Gestos... mímica... expressões... e riso, muito riso. Sou professora e... às vezes... ó meu Deus, tão má! Pois, o Sérgio lisonjeava-me...
- A «Sinhóra» é que é boa! E linda! E... bai pró Céu! Se ela não bai, eu deito o Céu abaixo, oh! Isso deito... Ó cará, a «Sinhora» num credita? Pois... Ó cará!
E gesticulava. Depois...
- Quando eu sé grande, quero ser jogador de futibóle como o meu pai... (o Sérgio era filho natural). E quero ser soldado. E hei-de vencer sempre como D. Afonso Henriques... Se os ladrões viessem à nossa casa. eu inté os trincava!... Ó cará! Se eles quisessem matar a minha avozinha... Oh Chi! 'inha «Sinhóra» que ela é que é velhinha... Num credita?
E prosseguia num arrazoado de palavras que dispunham bem e faziam da atmosfera da sala de aula um páteo de recreio cheio de risos e exclamações. Sabem... eu, eu gostava muito disto. Sinceramente. Era... era riso... Sentia-me rapariguinha. E ria, ria com eles perdidamente.
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Ontem encontrei o Sérgio e tive saudades. O Sérgio... O Rato... e os outros talvez tenham razão em dizer que trato muito democraticamente os meus alunos, mas, a verdade é que ser-se professora é escrever o rosto deles cá dentro e ficar com eles toda a a vida numa recordação presente. Eu... não sei... mas... Que tolice! Irei assim pela vida fora a recordar saudosamente todos os Ratos e Sérgios que me passaram pelas mãos?
O Sérgio... O Rato... e os outros.
Ontem tive saudades.
Como eu gostava que conhecessem o Sérgio!
Alegre... transparente... filósofo... e poeta!
- Eh! que o rio é que está lindo!... Parece renda...
O Sérgio... Gostava tanto que o conhecessem!


Maria Helena Amaro
In, «Maria Mãe», 1973.
Data da conclusão da edição no blogue – 16 de junho de 2014
http://mariahelenaamaro.blogspot.com/
 
Autor
amacsequeira
 
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