Esfaqueei um texto até ele não poder mais. Do seu sangue ensaiei um poema.
Tenho um filho nos braços e sei que me vale nisso a pena.
Se eu ouvisse o que minha mãe me dizia, hoje era um vendido,
Por isso me dediquei a sangrar a vida, a rasgar os pulsos nas mãos.
Pode faltar-me tudo, mas não me falta um verbo sentido.
Os que me criticam, qual rés pública, são todos meus irmãos.
Cães que não conhecem dono, prontos a morderem-me em protesto.
E eu, perfeito idiota, desta língua dispersa, crente e poliglota,
Sou do verso o gosto do vómito, um retorno ao ventre, indigesto.
Hei-de morrer como um gato que não escapou ao rodado.
Minhas tripas espalhadas pelo alcatrão.
Da minha boca nem um lamento, um suspiro em vão.
Mais me vale isso, que a morte naquilo para mim pensado.
Podia ter sido mestre ou advogado, da eloquência, um soldado,
Mas depois, não saberia o que fazer das palavras nascidas
Algures num prado, a luz das estrelas à luz das espigas, crescidas.
Meu destino é morrer a cada dia, a cada hora, a cada minuto
E escrever nos intervalos de tempo, resoluto.
in: «Os poemas não se servem frios» Temas 2010