Esmagou a beata no cinzeiro metálico, levantou-se, sacudiu uns fragmentos de cinza na perneira das calças, passou a mão pelos cabelos e saiu da sala de fumo. Desde que tinham abolido o tabaco dos escritórios, os funcionários iam fumar à salinha onde estavam as máquinas do café e dos refrigerantes. Durante o dia a salinha raramente estava vazia e às vezes chegavam a juntar-se dois ou três que, de cigarro na mão, davam de comer ao vício e uso às máquinas.
O Paulo ainda não conseguira livrar-se dos cigarros apesar de já ter feito duas ou três tentativas que fracassavam devido à tensão do trabalho. Talvez para as próximas férias.
Quando se aproximou da sua secretária reparou que o led vermelho do telefone estava a piscar, sinal que tinha uma chamada para atender. O seu trabalho consistia em fazer análises de risco para concessão de crédito de elevados montantes, análises complexas que envolviam frequentemente figuras publicas, avaliações patrimoniais, carteiras de acções e outros valores, depósitos em offshore e mais um sem número de parâmetros que tinham de ser passados a pente fino.
Trabalhava apoiado numa equipa de investigadores e juristas experientes, que procuravam confirmar todas as declarações do cliente e ver se encontravam algum ponto fraco na proposta de financiamento apresentada ao banco.
Era raro o Paulo tratar pessoalmente de qualquer dúvida directamente com o cliente e ainda mais raro efectuar ele próprio qualquer diligência. Por norma, limitava-se a requisitar o serviço e esperar tranquilamente pela resposta.
Tinha ascendido ao departamento de crédito a grandes clientes há três anos e ganhara fama de ter faro de perdigueiro para propostas duvidosas. Esta promoção foi à sua custa e não teve ajuda de nenhum padrinho, nem de nenhuma cunha como é habitual. É verdade que para ser admitido no banco, logo que saiu da tropa, foi preciso o empurrão de um tio que já era lá funcionário.
Entrou para o departamento de câmbios, trabalhou afincadamente, teve a sorte de ter um director que o ajudou e foi subindo ao longo de dez anos até chegar à posição actual. Manteve-se solteiro apesar de manter uma relação estável há mais de dois anos com a Isabel, uma professora de História que dava aulas no Monte da Caparica.
Cada um vivia no seu apartamento, visitavam-se com frequência e saíam juntos alguns fins-de-semana. Ambos gostavam de conhecer terras novas e percorriam sistematicamente o país de uma ponta a outra. Há pouco tempo tinham começado a incluir a Espanha no roteiro das “escapadelas”. A Isabel estava fascinada com a herança árabe e com os abundantes vestígios que ainda se podem encontrar por todo o sul da península.
Ao telefone estava a secretária do Dr. Bacelar Coutinho, o Presidente do Conselho de Administração do Grupo Lusitano, que integrava empresas que iam da hotelaria, à construção de iates, passando por cadeias de supermercados, moldes de plástico e mais alguns sectores escolhidos, não por gosto ou vocação, mas por oportunidade.
Tudo o que desse dinheiro era interessante para o Grupo Lusitano e para o Dr. Bacelar, que já estava a ficar impaciente com a demora na aprovação do crédito, para a construção de uma unidade onde se fabricariam os geradores que iriam equipar as novas torres eólicas, que se multiplicam pelas cumeadas dos montes.
Bastou fazer o estudo de viabilidade, ir buscar as pessoas certas à concorrência e propor o negócio a um banco. Primeiro ainda pensou em associar uma empresa de capital de risco ao negócio, mas isso iria dar mal aspecto.
Em Portugal quando se associa uma empresa de capital de risco, pensa-se logo que mais ninguém quer financiar o projecto.
Escolheu um banco com pouco peso nos negócios do grupo, mas que manifestava claramente vontade de crescer e tinha forte apetência pelo investimento na área tecnológica.
O Paulo voltou a afiançar à solícita secretária que não tinha ainda os elementos necessários para elaborar o relatório final, mas que as informações pedidas deviam estar a chegar a qualquer momento.
Na sede do Grupo Lusitano, no oitavo piso, onde estava a administração, o Dr. Bacelar teve conhecimento que o analista do banco estava renitente e isso deixou-o ainda mais nervoso, o que era extremamente raro.
Tinha de falar com a única pessoa em quem confiava, o seu confessor e mentor espiritual. Se tivesse oportunidade falaria com ele no dia seguinte, depois da missa matinal, logo às sete da manhã. De todas as formas, iriam encontrar-se no sábado para a reflexão semanal numa das casas da Obra e teria então oportunidade de lhe colocar o problema.
Alheio a tudo, o Paulo relia preguiçosamente um balanço da Cortilusa, uma empresa do Grupo na área da cortiça. Havia ali qualquer coisa que não batia certo, apesar dos resultados da exploração serem positivos. Fora por causa disso que mandara investigar a empresa, mas até à data ainda não tinham descoberto nada de anormal.
Foi um anexo ao balanço que lhe chamara a atenção, devido a uns movimentos aparentemente banais e inocentes, mas que para ele lhe pareciam movimentos de forma a camuflar alguma operação.
Só um técnico especializado e com muita atenção, poderia dar com aquela discrepância e mesmo assim ainda lhe subsistiam dúvidas. Até podia não ser nada de grave, ele é que já estava predisposto para desconfiar de tudo e de todos, mas era preferível fazer o cliente esperar mais uns dias, por muito importante que fosse, do que ser surpreendido mais tarde com alguma fraude que lesasse o banco.
Na sexta-feira telefonou à Isabel a saber o que ela tinha decidido para o fim-de-semana, pois ele não tinha planos. Combinaram sair no sábado depois de almoço, irem até à Comporta apanhar um bocado de sol e no regresso jantavam para os lados de Sesimbra talvez no Restaurante do António do Meco. Se lhes apetecesse até podiam ficar num hotel, senão iriam até à casa dela.
O Paulo não queria a Isabel esta semana no seu apartamento para não se sentir constrangido, pois a arrumação deixava muito a desejar e ele não tivera tempo, nem disposição para tal.
O tempo estava frio mas soalheiro e a primavera tardava. Na Comporta demoraram mais tempo que o previsto e já era noite quando estacionaram a carrinha BMW em frente ao restaurante. Ambos comeram dourada grelhada, acompanhada por Muralhas, um vinho verde que a Isabel adorava.
Acabaram por ir até ao cinema no Colombo e regressaram a casa dela. No dia seguinte preguiçaram até tarde, almoçaram uns acepipes ligeiros e o Paulo despediu-se, pois ainda pretendia consultar o seu correio electrónico e rever alguns documentos.
Queria entregar aquele caso o mais depressa possível, só esperava o resultado da investigação que estava nas mãos do Dr. José Manuel Guerra, um economista mais ou menos da sua idade e especializado em operações de offshore.
Subiu ao sexto andar, meteu a chave na fechadura e acendeu a luz da sala. Cheirava a tabaco, “porcaria de cheiro, tenho de deixar de fumar, pelo menos dentro de casa” pensou, enquanto abria as janelas da sala e da cozinha para arejar.
Tirou uma cerveja do frigorífico, descalçou as sapatilhas e ligou o computador portátil que estava sobre a mesa. Poucos segundos depois o computador emitiu um bip e apareceu a mensagem “low battery” no canto do ecrã.
“Não pode ser, esteve sempre ligado à corrente no escritório e não o usei mais, será que pifou?” estes pensamentos passaram pela cabeça do Paulo que, mesmo assim tirou o carregador da mala e ligou-o à corrente.
Logo o computador arrancou e os programas correram normalmente. Ligou a Net, abriu a sua caixa de correio e encontrou-a vazia. Nenhum registo, nem dos e-mails enviados, nem recebidos, nada, parecia que tinha sido acabada de criar.
“Mas que raio se terá aqui passado?” Abriu uma pasta onde alojava os trabalhos do banco e deu logo por falta dos documentos respeitantes ao Grupo Lusitano. “Merda, mas que raio… andaram aqui a mexer, só pode ser isso”, a cabeça estava vazia e apenas ouvia o coração sobressaltado. Bebeu o resto da cerveja, sentou-se e disse em voz alta.
- Quem terá sido o sacana que mexeu nisto? Eu estive sempre perto dele no escritório.
Deixou-se ficar a reflectir nas consequências daquele contratempo e concluiu que até nem era assim tão grave. Podia pedir aos investigadores que lhe reenviassem os e-mails da última semana e o relatório conseguia fazê-lo durante todo o dia seguinte, pois ainda tinha na memória as principais conclusões.
De súbito levantou-se e abriu a porta da rua, examinou a fechadura e concluiu que não havia vestígios de ter sido forçada. Foi à estante onde guardava os CDs e teve outra surpresa, não estavam pela ordem habitual.
Apesar de ser bastante desarrumado, o Paulo tinha um conjunto de pequenas rotinas, manias por assim dizer, e uma delas era pôr sempre os CDs dos dossiers terminados, por ordem alfabética.
Não tinha ainda nenhum CD do Grupo Lusitano, mas alguém tinha lá estado à sua procura e misturara tudo. Percorreu a casa e não encontrou mais vestígios do assalto, não valia a pena chamar a polícia, iria ser uma carga de trabalhos para nada.
Ligou para o Dr. Guerra mas ele não atendeu e decidiu não lhe deixar mensagem, amanhã o apanharia no escritório e poderiam trocar impressões. Antes de se deitar voltou a examinar a fechadura da porta, uma fechadura de segurança com trancas que tinha sido misteriosamente aberta, porque ele não acreditava que quem tinha ido a sua casa tivesse escalado seis andares, isso era para os filmes do homem aranha.
Custou-lhe a adormecer, ao contrário do habitual, não lhe saia da cabeça o terem desaparecido o correio e as pastas referentes ao grupo Lusitano. Cada vez lhe cheirava pior aquele negócio e o que não passava de simples e ténue suspeita, tinha-se agigantado e era uma suspeita substancial.
Logo que chegou ao escritório foi até à salinha, tirou um café e fumou um cigarro que não lhe soube tão bem como de costume. Tentou ligar para o Dr. Guerra mas como ele continuava incontactável, ligou-lhe para o escritório que ficava numa das torres das Amoreiras. A recepcionista informou-o que também ela o procurava sem sucesso e comprometeu-se a avisá-lo logo que o tivesse em linha.
O Paulo decidiu que tinha de falar com o seu director, pô-lo ao corrente da situação e decidirem o que fazer. Por sua livre vontade esperaria pelos resultados da investigação e se o Dr. Guerra não se podia encarregar de tal dossier, outro colega o substituiria. Mas deixou para o seu director a decisão final, ele sabia que tinha de ser assim, até para sua salvaguarda futura.
O led do telefone piscou, esticou o braço e entalou o auscultador entre a orelha e o ombro enquanto acabava de escrever a frase que estava a meio.
Era o director a dizer-lhe para passar de imediato no seu gabinete que ficava no mesmo andar, mas virado para a avenida. Atravessou o corredor, cumprimentou dois colegas que discutiam os resultados de futebol enquanto aguardavam o elevador e bateu de leve na porta do gabinete do Dr. José Alpoim, que teria uns cinquenta e cinco anos, forte compleição que já albergava alguns supérfluos “pneus” e que era doido por caça e touradas.
- Entre Paulo, sente-se. Então que tal o fim-de-semana, foi à bola?
- Não, fui dar uma volta aqui por perto.
- Bem, você é solteiro, não é?
- Sim, mas…
- Muito bem! Tenho aqui uma proposta para lhe fazer, que até a mim me admira. Foi-me endossada pela administração e requer uma resposta imediata. Percebeu? Imediata…
- O Dr. Está a deixar-me atrapalhado, pois não sei de que me está a falar.
- Pois não, nem você adivinha. Bem, a proposta é a seguinte, o Paulo está disposto a aceitar um lugar de director de crédito na nossa delegação da Suiça? Claro que tem de ir viver para Zurique, mas as condições financeiras são excelentes e o trabalho é muito mais ligeiro.
- Assim de repente… Não sei que dizer Dr. Alpoim.
- Bem, eu compreendo, mas a administração quer resolver isto até ao meio-dia, sem falta.
- Mas eu tenho aquele caso do Grupo Lusitano, aliás eu queria falar-lhe disso, pois…
- Deixe lá o caso do Grupo Lusitano, vou passá-lo ao Ramiro, não se apoquente mais com isso. De todas as formas, mesmo que não aceite o lugar na Suiça, tenho indicações que irá ser transferido deste departamento.
- Está a comunicar-me que serei punido com uma transferência?
- Não, nada disso, digo-lhe que será transferido com promoção de carreira, mas nunca será um lugar tão bom como o da Suiça. Talvez para a Madeira, sabe que temos lá a zona franca e você é um homem que percebe daquilo.
- E quando é que tenho de ocupar o lugar na Suiça?
- Amanhã, o mais tardar na quarta. Está tudo pronto para o receber e já tenho aqui uma reserva em seu nome.
- Então está tudo preparado?
- É verdade, como lhe disse até fiquei admirado, mas compreende, eu não passo de um simples director de departamento, percebeu caro colega. Agora será meu colega e quem sabe quando acabar a comissão até pode vir a substituir-me.
- Muito bem Dr. Alpoim, - decide-se o Paulo - preciso de tratar de alguns problemas pessoais, podemos apontar a partida para quarta.
- Claro, claro. A partir deste momento está dispensado do serviço e só tem de se apresentar em Zurique.
Quando saiu do gabinete do seu ex-director um turbilhão de pensamentos toldava-lhe o cérebro. “Esta história cheira mal, muito mal” e regressou ao escritório, juntou os seus objectos pessoais meteu-os na pasta e saiu sem anunciar aos colegas a transferência e sem se despedir, uma exigência do Dr. Alpoim.
Quando chegou a casa, ligou de imediato para a Isabel e como ela não atendeu, certamente estava em aulas, deixou mensagem para lhe ligar com urgência.
A meio da tarde quando ela lhe telefonou e ele lhe anunciou a imposição da transferência, a reacção dela foi comedida, “agora não nos podemos ver todos os fins-de-semana, mas não podes perder esta oportunidade”, o que admirou o Paulo que esperava alguma expressão de desagrado.
Na quarta-feira apresentou-se cedo no aeroporto, fez o check-in, despachou as bagagens entrou na sala de embarque, comprou dois jornais, alguns maços de cigarros e sentou-se à espera.
Abriu o Diário de Noticias e foi percorrendo os artigos até esbarrar na fotografia de um carro irreconhecível, todo destruído, que estava suspenso de uma grua.
Dizia o artigo que o automóvel tinha sido retirado do fundo de uma falésia perto do Farol do Penedo da Saudade, em S. Pedro de Moel.
O cadáver que tinha sido retirado do interior era presumivelmente o proprietário do veículo e chamava-se José Manuel Guerra, economista, de 33 anos, residente em Lisboa.