Numa confusão de referenciais e perspectivas, parecia que a embarcação estava parada e as encostas percorriam os buracos negros em vertiginosa velocidade, com as paredes íngremes dos penhascos passando pelas escotilhas com sorrisos de orgulho e ciúmes.
Luxuosa, flutuava nas cinzas a litorina, com a maioria dos passageiros já apertando os parafusos. Somente não se via os que prevaricavam nas confortáveis cabines da primeira classe, mas muito bem se sabia da existência daquela fornicação, ainda que os guindastes, com engrenagens bem azeitadas, não fizessem nem mais um ruído.
No meio ao silêncio da cerimônia, distribuindo estatuetas doiradas e outros prêmios terrestres aos viajantes das nuvens celestiais, lentamente, despertou...
Era Sofia, numa aparição deslumbrante, serpeando como ainda no Jardim do Éden, enquanto o comboio se arrastava com destino à uma distante Istambul, ainda imersa nos contos das mil e uma noites.
O sultão havia convidado a todos para a inauguração da nova ala do harém, recheado de concubinas e eunucos à luz da lua. Enquanto planavam, piscavam luzes de neon ao longo do teto e das paredes refletindo no vitral de vidro pintado, imprimindo no ambiente uma espécie de arco íris de luz fria.
Como assustada, a parede hesitou quando alguma coisa brilhou e desapareceu! De fina jaez e paramentado a rigor - vestia brocado, tafetá e tule vermelhos - despencou no trono de ouro decorado com rubis e pérolas. Ostentava a Adaga Sagrada do Podre Poder, cravejada de brilhantes de fundo de garrafa, que trazia à ilharga, mantendo embainhada a espada.
Diziam que há muito tempo não saia daquela bainha e nem cortava mais. Que o sultão prezava mais os minaretes que a própria espada. Mas, tudo isso era como mosaicos nas paredes.
Respirando a fria brisa recém saída do ar condicionado, Sofia sentou-se outra vez. Pernas dobradas apoiando o mento ao peito, quase imperceptível na penumbra do lavatório. Ouviu como longínquos os violinos e guitarras ciganas entoando czardas húngaras como serenata ao luar. Em silencio, dirigiu-se até a janela olhando o asfalto movimentado.
De repente, com estrondo, um raio riscou o escuro, despencando como elefante depois de ter subido os degraus do Caminho do Rei. Sepulcral o silêncio se fez. Naquele momento, Sofia percebeu que estava perigosamente próxima à janela do primeiro andar.
O barulho do raio espantou as tantas moscas dos cabides. O barulho das asas fez com que todos acordassem, como de um sonho numa tarde de verão, amadurecendo de vez as uvas e os greip fruits californianos. Inclinou-se um pouco mais, ao pé das paredes, respirando com dificuldade, atraindo a atenção dos utopianos magarefes, ricamente vestidos de branco como convinha à função. Caiu de borco, ensopou a alcatifa com sangue das ventas, tresfolegando qual javali abatido. E não mais se moveu.
Ali em decúbito, jazia o sultão. O rosto lívido refletindo a luz prateada do luar. Saindo das órbitas esbugalhadas, um filete de sangue adornava os galhos. E se perguntarem por Sofia, direi apenas que Sofia ainda estava no trem, a milhares de quilômetros, cantarolando com um pouco de selvageria cruel, as mais belas canções de escárnio e mal dizer ao som dos bandolins.
in As palavras desconstruidas - Filampos Kanoziro